Saiba mais sobre o ciclista dinamarquês que venceu o Tour.
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O reservado Jonas Vingegaard saiu finalmente da sua zona de conforto para assumir-se como um campeão, vencendo a Volta a França em bicicleta sem nunca abdicar dos valores que reforçou na adolescência ao trabalhar numa fábrica de peixe.
Entusiasmante e espetacular na bicicleta, o dinamarquês de 25 anos é monótono, repetitivo - foram incontáveis as ocasiões em que usou a palavra incrível, fosse para descrever as suas duas vitórias em etapas ou o sentimento de conquistar o triunfo na 109.ª edição do Tour - e extremamente introvertido fora dela, num contraste gritante com o exuberante Tadej Pogacar (UAE Emirates), o jovem esloveno que destronou.
O ciclista da Jumbo-Visma não gosta da exposição que a amarela lhe deu e não o escondeu, encurtando entrevistas, respondendo apenas o essencial - o seu inglês pareceu curto para aquilo que seria suposto expressar. É nas montanhas, e não nos compromissos mediáticos ou nas redes sociais (palco predileto dos ciclistas da sua geração), que o delgado dinamarquês se sente bem, embora só as tenha descoberto tarde, numas férias familiares nos Alpes franceses, durante as quais chegou a aventurar-se no temível Galibier.
"Descobri a minha primeira subida aos 16 anos. Depois disso, percebi que não era nada mau", contou.
Nascido em 10 de dezembro de 1996 em Hillerslev, uma pequena aldeia piscatória de apenas 370 habitantes, inserida numa zona rural de gente humilde e trabalhadora na costa do Mar do Norte, o corredor da Jumbo-Visma experimentou várias modalidades antes de descobrir a bicicleta: andebol, natação, badminton e até futebol, mas a sua estatura diminuta impediu-o de fazer carreira naquele desporto.
Fervoroso adepto do Liverpool - o site especializado CyclingWeekly conta que já foi apanhado várias vezes em Anfield -, o miúdo louro e franzino descobriu a paixão pelo ciclismo aos dez anos, quando a Volta à Dinamarca passou à sua porta.
Embora tenha sobressaído imediatamente num teste organizado pelo clube local para um grupo de crianças, e semanas depois tenha conquistado o primeiro pódio numa corrida, Vingegaard teve dificuldades em afirmar-se no panorama velocipédico nacional, porque o seu peso pluma (tem 1,75 metros e 60 quilos) era incompatível com as ventosas planícies dinamarquesas.
A ColoQuick CULT, uma equipa continental, reparou no seu potencial e contratou-o como "estagiário em 2016, oferecendo-lhe, graças aos consistentes resultados, um contrato para a temporada seguinte. Mas a progressão de Vingegaard foi interrompida em maio de 2017, quando partiu o fémur numa queda grave na Volta aos Fiordes.
Sem poder andar de bicicleta, decidiu começar a trabalhar numa fábrica de processamento de peixe de Hanstholm, o porto dinamarquês que espreita o Báltico e de onde via partir os ferries para as Ilhas Faroé.
"Gostava daquele trabalho mesmo tendo de acordar às cinco da manhã. Era relaxante e não tinha de pensar muito. Apenas tinha de anotar as encomendas de linguado e bacalhau, tratar dos recibos e das licitações. Não precisava de trabalhar, mas ainda não sabia se iria tornar-me ciclista profissional", explicou numa entrevista ao diário desportivo italiano Gazzetta dello Sport.
Mesmo quando recuperou da lesão, Vingegaard continuou a trabalhar na fábrica. "Não é fácil madrugar para ir para a fábrica, passar oito horas sem descanso e, de tarde, outras quatro ou cinco sobre a bicicleta. Isso forma o caráter", notou.
O agora campeão da Volta a França "absorveu" dessa experiência e das origens humildes os seus principais traços de personalidade, aos quais se junta uma bondade mais forte do que a ambição - como foi bem evidente neste Tour, primeiro quando esperou por Pogacar após o esloveno ter caído e, no sábado, quando "ofereceu" o triunfo no "crono" ao companheiro Wout van Aert.
"Ele sabe que há coisas mais importantes do que a bicicleta. Ele é muito familiar", disse no sábado Van Aert, confirmando aquilo que todos já tinham percebido, tal é a devoção de Vingegaard às suas duas "meninas" - era com elas que falava ao telefone quando Pogacar o tentou congratular após as vitórias do ciclista da Jumbo-Visma no Col du Granon e no Hautacam.
Trine Hansen, a namorada que conheceu na ColoQuick CULT (era a responsável pelo marketing), e Frida, a filha de quase dois anos, são "tudo" para o dinamarquês, com a companheira a desempenhar um papel fundamental na sua carreira, que "descolou" quando foi descoberto pela Jumbo-Visma, depois de uma temporada de 2018 na qual venceu o contrarrelógio da Volta a França do Futuro, acumulou vários resultados no "top 10" do escalão sub-23 e estabeleceu um novo recorde da ascensão ao Col de Rates durante um estágio.
"Jonas tem tendência para esconder as emoções, trabalhamos juntos para que ele se abra mais e para que não seja sempre eu a tomar as decisões", reconheceu a mulher responsável pela "gestão de ansiedade" do camisola amarela - foi Trine, filha de Rosa Kildhal, uma celebridade na Dinamarca, que o aconselhou a não ler jornais ou as redes sociais, para lidar melhor com a pressão de ser líder do Tour.
O conselho parece ter resultado, assim como o trabalho realizado pela Jumbo-Visma, depois de Vingegaard ter cedido à pressão na Volta a Polónia de 2019, um dia depois de se ter estreado a vencer no WorldTour e de ter subido à liderança da prova, na véspera da última etapa.
"Não estava preparado para a pressão, tanto da parte da equipa como de todo o ambiente e da imprensa", reconheceu após ter "bloqueado" mentalmente e caído 25 lugares na derradeira tirada.
A Jumbo-Visma trabalhou o "psicológico" de Vingegaard, deu-lhe tempo para crescer, levando-o à Vuelta2020 para trabalhar para Primoz Roglic, de quem é amigo pessoal, e em 2021 viu a paciência retribuída com uma vitória numa etapa da Volta aos Emirados Árabes Unidos, logo no início da época, duas etapas e o triunfo na geral da Settimana Coppi e Bartali e o espantoso segundo lugar no Tour, ao qual chegou depois da "retirada temporal" de Tom Dumoulin.
Praticamente desconhecido no ano passado, o dinamarquês, que é fã de Alberto Contador e dos irmãos Schleck, entrou na "ribalta" do ciclismo para não mais sair, consolidando a sua fama ainda antes da "Grande Boucle", com um grande desempenho no Critério do Dauphiné, no qual foi segundo atrás de Roglic.
Hoje, todos sabem quem é o tímido e discreto Vingegaard, que tem admiradores entre a realeza dinamarquesa - a Rainha Margarida partilhou uma fotografia a assistir ao "crono" de sábado - e os políticos europeus - espantou-se por o presidente francês, Emmanuel Mácron, conhecer o seu nome.
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