Aos 36 anos, Tiago Pires estreia nas salas de cinema o filme "Saca", uma espécie de retrospetiva dos 20 anos de carreira que dedicou às ondas. Assume-se como um motor de mudança do surf em Portugal e sublinha que não sente nostalgia ao ver os melhores do mundo nas praias nacionais
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Por esta altura estão os melhores do mundo em Supertubos, Peniche, numa etapa da World Surf League. Não sente nostalgia dos momentos em que também estava ali?
Nem por isso. Estive tão ocupado este ano, com outros projetos, que surfei menos que o normal. Não estou tão em forma como já estive ou como gostaria. Estou envolvido com outras coisas e não penso tanto nessa parte nostálgica de competir, de sentir o doce da vitória ou a amargura da derrota.
Alguma vez pensou que a sua vida podia dar um filme?
Acho que todas as vidas dão um filme. Há uns anos que já tinha esta ideia de materializar a minha vida num filme, uma ideia que foi crescendo até conseguir o aval de alguns patrocinadores e encontrar a pessoas certa para realizar o filme. E passou de ideia a certeza.
O que é que o surf tem para dar origem a tantos filmes biográficos ou documentários?
O surf é um desporto diferente, irreverente. Arrisca-se mais, o perigo é uma constante, as imagens são muito espetaculares e imponentes. A forma como nos arriscamos e expomos a perigos grandes torna as coisas mais dramáticas e isso torna a vida de um surfista digna de ser documentada.
Foi fácil de fazer a retrospetiva de uma carreira?
Foi uma carreira muito interessante. Com altos e baixos, algo previsível para uma pessoa que foi a primeira a alcançar um estatuto tão grande neste desporto. Antes de mim, em Portugal estávamos muito aquém deste nível do surf mundial. Acabei por me bater de frente com os melhores do mundo, num percurso com muita aprendizagem, muitos momentos difíceis e muitas derrotas. Mesmo nós os surfistas de topo perdemos muito mais vezes do que ganhamos. No meu caso, o que tornou especial o percurso foi o abrir de portas.
"Várias vezes o surf é um trabalho. Dá muito trabalho. Há muita logística, muitas viagens, com dez pranchas às costas. Viver dificuldades nos aeroportos, com companhias aéreas"
Sente-se o motor de mudança do surf em Portugal?
De certa forma sim. Nunca um português tinha tido um resultado expressivo no surf. Fui vice-campeão mundial júnior e em 2007 qualifiquei-me para o circuito mundial WCT, reservado para os 44 melhores do mundo. Competi sete anos com eles e isso mudou bastante o surf nacional, esse meu percurso. O surf afirmou-se como desporto profissional, de futuro, de possibilidade de construção de carreira. Antes, não era visto dessa forma.
Sente que podia ter feito mais?
Sem dúvida que podia ter feito. Os resultados acabam por comandar as carreiras. São eles que ditam e escrevem as vitórias. Muitas vezes são pequenas diferenças nas classificações que mudam tudo. Tive uma carreira muito boa para a média de um surfista europeu. Não me posso comparar a um americano ou a um australiano que já nascem a surfar e têm uma família recheada de campeões de surf.
Teve uma profissão ou sente que andou a divertir-se?
Várias vezes o surf é um trabalho. Dá muito trabalho. Há muita logística, muitas viagens, com dez pranchas às costas. Viver dificuldades nos aeroportos, com companhias aéreas. Chegar aos destinos é complicado. Não é uma parte muito divertida. Mas depois quando chegamos ao nosso escritório, que são as ondas, esquecemos o resto. É uma profissão de sonho.
Ainda dedica muito tempo ao surf?
De momento vivo muito em redor do filme. Vai entrar no circuito comercial em breve, quero levá-lo a festivais no mundo inteiro, concorrer a prémios. Tenho uma filha de um ano e dedico mais tempo à família. Mas faço muito surf, pagam-me para isso. Tenho contratos até 2020.
Que episódio recorda que tenha vivido com algum dos surfistas da elite mundial?
Em 2004 fui com o Adriano de Souza, atual campeão do mundo, à Indonésia, à procura de uma praia remota para encontrar a onda perfeita. No segundo dia em que lá estivemos, cortei o pé e tive de ser cozido a frio por um empregado do hotel. Levei seis pontos. Fiquei a semana toda no quarto a ver filmes enquanto o Adriano surfava. E depois tinha de o ouvir a contar as histórias das ondas que estava a encontrar. Agora dá para rir, mas na altura não teve piada nenhuma.
Portugal tem surfistas jovens com talento para chegarem à elite mundial?
Claro, temos capacidade para isso. Tudo se decidirá conforme a vontade que eles tiverem, conforme o suor que estiverem dispostos a deixar na prancha.
"Ondas gigantes não estão nos meus planos"
A Nazaré é um dos pontos mundiais mais conhecidos entre os especialistas das ondas gigantes. Tiago Pires olha para esse "mundo" à distância e sem vontade de lá entrar. Por agora. "Não faz parte dos meus planos. Surfar em ondas grandes exige grande preparação, rotinas próprias. Quem faz este surf dedica-se a cem por cento e, por agora, ainda estou dedicado ao surf de alta performance, a descobrir ondas perfeitas. E quero fazer projetos fora da caixa, algo que ainda não tenha sido feito. Há muita gente a surfar ondas gigantes e muito melhor do que eu. Fisicamente não me vejo apto para isso. Mas, no futuro, nunca se sabe."