"Sou como o Aves a ganhar ao Real Madrid", a entrevista ao vencedor da S. Silvestre do Porto
Tem 26 anos e a vitória na S. Silvestre do Porto fez dele o famoso "amador" - designação utilizada por quem não lhe fixou o nome - que bateu os profissionais. Se a vida de António Pedro Rocha mudou, vai sabê-lo dentro de dias.
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Corre pelo Clube Desportivo São Salvador do Campo, de Santo Tirso, mas é natural de São Pedro do Sul, trabalha no "Notícias de Vouzela" e faz treinos de pista em Viseu. António Pedro Rocha parece ter uma energia inesgotável, mas nem o entusiasmo que transborda até nas entrevistas o leva a tirar os pés da terra. E, mais do que na S. Silvestre do Porto, sabe que é dia 12 que o seu futuro se joga.
Já digeriu a vitória na S. Silvestre do Porto?
As primeiras horas foram difíceis, fiquei muito ansioso. Só dormi quatro horas. Mas na manhã seguinte fui treinar, fiz tudo da mesma forma. Há mais competições à porta. Dia 12 tenho o Campeonato Nacional de Estrada e o nosso foco está apontado para aí, estarão lá todos os melhores e, depois deste resultado, é expectável que tenha uma boa prestação. Ficou muita gente de olho em mim.
Para que lugar aponta?
O top-10. No Porto já apontava ao top-5. Ficar nos 10 será um grande resultado, pois já fiz 22.º em 2016.
Tem sido mais reconhecido?
Posso dizer que sim, o meu telefone ainda não parou de tocar. A S. Silvestre do Porto tem uma cobertura mediática elevada. Há reações curiosas, pessoas que me perguntam o que como para correr... Já me tratam como o "amador", dizem "olha o amador".
Assume a designação?
Sim, embora alguns confundam o ser federado com ser amador. A minha única diferença é a de ter outra profissão. Não tenho rendimentos que me permitam estar a 100% no atletismo. Tenho um espaço curto para treinar, ao final do dia, mas preparo-me a um nível elevado. Em Portugal a maioria dos atletas é como eu. Sou jornalista no final do dia troco esse fato pelo de atleta durante uma a duas horas. Tem corrido bem.
Provavelmente o que lhe falta mais até são as horas de descanso.
É verdade. Até há três meses - e daí a mudança que proporcionou estas vitórias -, trabalhava de segunda-feira a domingo, sem interrupções. Natal, passagem de Ano, todos os dias, pois servia à mesa, num café-restaurante. Portanto, além do jornal, às sextas-feiras à noite, sábados e domingos fazia esse serviço. Eram muitas horas em pé e até tarde. Para as provas tinha de me levantar cedo e chegava mais cansado. Agora já descanso e treino mais.
Disse que provavelmente a do Porto era a sua maior vitória. Porquê "provavelmente"?
Por não querer desvalorizar as outras corridas. Mas a S. Silvestre do Porto é uma prova mítica, sempre com grandes atletas e na última década sempre ganha pelos do Sporting, o Rui Silva, o Rui Teixeira e o Rui Pedro Silva. Interrompi a série dos "Ruis". E ainda admiro muito o Rui Silva, uma referência para a maioria dos atletas atuais.
Não se sente pequenino junto a tantos campeões?
Sinto! Devo ter sido talvez o sexto português a vencer. Sou como um Aves a ir marcar o golo da vitória ao Real Madrid no último minuto!
Ser terceiro em Macau foi ainda mais significativo?
Não. Em Macau há uma maratona, com a meia-maratona integrada e foi essa que corri. Tinha quatro atletas que se iriam bater comigo. Portanto, correndo mal eu seria quinto. Defendi-me bem e segurei o terceiro lugar, pois os dois primeiros eram quenianos que fugiram rapidamente e fiquei a vigiar o terceiro queniano.
"Nunca escrevo sobre mim, não quero parecer vaidoso"
Vai ter de escrever sobre a S. Silvestre para o Notícias de Vouzela?
Não, nunca escrevo sobre mim! Já aconteceu pedirem-me e não quero. Posso dar uma ajuda, não mais do que isso. Não sou vaidoso, nem o quero parecer.
Como é trabalhar na Imprensa regional?
É promover uma região, neste caso cravada no centro de Portugal, limitada e pobre. A nossa missão é dar voz a quem é geralmente esquecido. Fiz um estágio na rádio e tenho algumas experiências na televisão, comentando atletismo para a TVI24. Por vezes ligam-me, a perguntar se vou correr ou posso ir comentar. Aliás, gostei muito das mensagens dos jornalistas da TVI depois da vitória no Porto. Os atletas gostam de me ouvir, tenho uma visão diferente: faço sobretudo elogios ao seu trabalho e evito as comparações com os antigos.
"Nos juniores havia 88 melhores do que eu"
Já viu que o fundo português vive anos de crise. Porquê?
Foram-se esgotando os grandes valores. Diz-se que antigamente se treinava mais, mas acho que não é assim. Agora temos melhores condições, mas se calhar a menor competitividade leva a que não se treine para marcas mais elevadas. Como sou recente nisto, não sei dizer como era o antigamente de que se fala...
Você, sendo um atleta com outra profissão, não será um bom exemplo do desperdício de valores?
Não, porque só comecei aos 18 anos e na altura era 89º... Portanto, nos juniores havia 88 melhores do que eu. Era um fraco júnior, fui um razoável sub-23 e agora como sénior é que estarei a "explodir". Entre 2010 e 2013 só treinava como recreação, corria porque me apetecia. Só quando fui estudar para Viseu e comecei a treinar com outros atletas é que evolui. Seguia o plano de treino de outro atleta e, quando lhe ganhei no corta-mato da Amora, o treinador dele, o Manuel Oliveira Gomes, decidiu ficar comigo. E nos últimos dois anos comecei a ter resultados.
E esta época vai em sete vitórias consecutivas...
É verdade. Com exceção de Ovar - onde fiz a marca que me valeu o convite para Macau - há três meses que não perco para um português.
"Na escola era gozado por perder até com as raparigas"
Dedicou-se sempre ao meio-fundo e fundo?
Já fiz provas de pista, mas nunca velocidade ou saltos. Creio que escolhi aquilo em que sou bom. Embora tenha uma história curiosa. Agora sou o fundista com melhor ponta final, mas quando andava no oitavo e no nono ano perdia todos os sprints da escola. O professor colocou-me a correr com as raparigas e também perdia para elas. Era muito franzino e todos gozavam comigo. Imagine-se, o rapaz que sofria o bullying por não conseguir dar às pernas agora ganha ao sprint. Já experimentei os 1500 metros, mas o meu treinador diz que tenho um estilo de corrida económico e sou feito para as longas distâncias.
Alguma vez pensou deixar o atletismo?
A janela de alta competição é muito curta. Como comecei tarde, acho que tenho de tentar mais uns anos.
Não teve o sonho de ser um atleta profissional?
Neste momento é impossível. Se conseguir continuar com estes resultados, e sobretudo se no Nacional de Estrada obtiver um bom resultado, posso abrir essa janela. Mas prefiro pensar prova a prova, nunca a longo prazo.
Se lhe derem a escolher entre ser jornalista ou atleta profissional?...
... Quero ser atleta profissional. Até por ser uma carreira mais curta. Jornalista poderei ser até aos 65 ou 70 anos, atleta só até aos 36 ou 37. Além disso, é um sonho. Quem me dera poder só treinar e ganhar dinheiro com isso.
Gosta de correr, ser fundista não implica sofrimento?
Significa um sofrimento diário. Não ganhei o Porto no dia 30, ganhei porque treinei três ou quatro meses à bruta! É preciso sofrer e, sobretudo, ter paixão. Só podendo treinar a partir das sete horas da noite, e na região onde estou, apanho muito frio. Fazer 17, 18 ou 20 quilómetros de treino nessas condições custa, apetece tudo menos andar ali.
"Quando saía do café e ia treinar à uma da madrugada chamavam-me maluquinho"
É mais difícil ser atleta para quem é de S. Pedro do Sul ou outro local no interior?
É um bocadinho mais difícil. Ali não há tradição. Quando saía do café e ia treinar à uma da madrugada chamavam-me maluquinho; agora dão-me palmadinhas nas costas [ri-se]. É também difícil porque estou longe do meu treinador. Ele é da Tocha, em Cantanhede, e nunca me viu treinar. Combinamos tudo por SMS ou email. O que me vale é ter um grupo de treino, com alguns atletas de Oliveira de Frades ou de Vouzela.
Portanto, nunca treina em pista?
Faço treinos de pista, mas vou a Viseu, duas ou três vezes por semana. De início até existiu alguma polémica, porque tinha de pagar para treinar. Eram 2,27 euros. Isso já foi ultrapassado, compreenderam que não vamos lá para passear.
Além do sacrifício, também haverá o prazer de correr...
Claro! Gosto muito de correr, de chegar ao final da semana e verificar quantos quilómetros fiz, de passar os treinos para o computador, de verificar se estou a melhorar. Correr é uma paixão.
Vai acabar na maratona?
O meu treinador diz que sim, que o meu grande resultado será na maratona. Mas só daqui a cinco ou seis anos.
"Tudo na vida é mais fácil do que ir correr"
Você não será o melhor exemplo, mas há ou não muitos talentos que se perdem?
Há, muitos por culpa própria. Diria que a maioria. Quando os atletas chegam aos 17 ou 18 anos, tudo na vida é mais fácil do que ir correr. É mais fácil pegar na PlayStation, ou levar a namorada ao cinema, ou ficar junto à lareira. Quando fiz o tal 89.º lugar nos juniores, a maioria deles tinha mais talento do que eu. Eram todos potenciais vencedores da S. Silvestre do Porto! [ri-se] Todos se perderam, fosse por copos ou outras diversões, e eu fui crescendo. Atualmente temos o Rui Pinto, que é dos melhores atletas portugueses, e dos nascidos em 1992 se calhar o segundo melhor já sou eu! É evidente que também faltam apoios, de clubes ou federação, para segurar esses talentos.
Esse apoio é assim tão importante?
Um jovem quando ingressa na Universidade e se forma vai tendo contas para pagar. Sobretudo os de pista, têm um retorno monetário mínimo. Na estrada ainda se consegue algum fundo de maneio, na pista são horas a treinar para chegar ao final do mês e ganhar sempre o mesmo. Ou se gosta mesmo e se aceita, pensando que a longo prazo se vai conseguir algo mais, ou não têm possibilidades.
Há um outro aspeto: a dedicação dos profissionais é a ideal? Não lhes falta algo mais, como estágios em altitude?
Um dos grandes pecados dos portugueses é a divisão. Faltam grandes grupos de treino, que se juntem para estágios em altitude, para alavancar melhor os resultados. Vivemos cada um para o seu lado, como se fosse uma banda em que cada um toca a sua música.
Já vemos atletas de outros países europeus a fazer melhor...
Como o Jakob Ingebrigtsen, que passou a ser o meu ídolo. Estou sempre a seguir vídeos dele. Os irmãos Ingebrigtsen vão treinar na Suíça, Estados Unidos... Sempre em altitude.
Gostava de poder fazer uma carreira assim?
Nunca tive uma experiência de treino em altitude. Gostava, pois. De fazer um estágio para preparar bem uma competição. Os portugueses fazem-no muito esporadicamente, uma vez por ano. Acredito que seja assim por falta de apoios. Se ganhassem uns bons milhares de euros também treinariam assim. Mas o dinheiro é das contas do clube, que tem os seus objetivos. Seria importante os atletas debaterem mais vezes o que se poderia fazer. E terem um fundo de maneio para prepararem só uma competição. Se tivesse sustentabilidade para treinar só uma corrida, seria diferente. Há amor para andar aqui, mas é preciso dinheiro para comprar sapatilhas, roupa para treinar, suplementos, pagar deslocações.
Se, como fazem alguns países, oferecessem um emprego público aos atletas para lhe garantir condições e futuro, seria uma solução?
É um bom caminho. Há países que até o fazem para naturalizar atletas. Mas não sei até que ponto os nossos atletas estariam disponíveis para uma carreira como a militar. O que me ensinaram é que só é atleta quem está disposto a abdicar de tudo em função de um objetivo ou sonho. Temos o caso do Julien Wanders, um jovem suíço de família rica que deixou tudo o que tinha e foi treinar para o Quénia, foi viver como eles; hoje é um dos melhores atletas do mundo. E é branco. Em Portugal há muito poucos dispostos a abdicar de tudo dessa forma.
Seria capaz de fazer isso?
Neste momento abdicaria de tudo. Se soubesse que atingia um bom nível, estaria nessa disposição.
"Disseram que estava dopado, que ia na "mama", mas no Porto só estava a fugir dos outros"
Que sonhos tem? Ir ao Jogos Olímpicos?
Esse não tenho. Já transformei um sonho em realidade, ao ganhar a S. Silvestre do Porto. O próximo será ganhar uma medalha a nível nacional, seja na estrada, pista ou corta-mato. Quero, nos próximos anos, chegar a um pódio nacional. A longo prazo, espero representar a Seleção Nacional, num Europeu ou na maratona. Jogos Olímpicos, há muitos a sonhar com isso. Dos nossos profissionais já são poucos os que lá chegam. No Rio de Janeiro tivemos dois homens na maratona e na pista, nas provas de fundo, não houve ninguém. Se é difícil aos profissionais sonhar com isso, eu, que sou o "amador", devo tirar o cavalo da chuva...
Quais os atletas que mais admira?
O Rui Silva, em primeiro lugar. E depois tenho quatro: o Rui Pinto, do Benfica, o Licínio Pimentel, o Rui Pedro Silva e o Nuno Lopes, todos do Sporting. Respeito muito o que fizeram glórias como Carlos Lopes ou os gémeos Castro, passei "N" horas a ver vídeos deles, mas admiro mais aqueles com que estou, os que vejo a crescer.
Ganhar ao Rui Pedro Silva foi uma emoção muito especial?
Foi, mas prefiro dizer que ganhei com os treinos. Só por isso aguentei o ritmo dele. Ele deu-me os parabéns. Mas também posso dizer que depois do pódio nem tudo foram rosas. Já ouvi comentários do estilo "é amador, então está dopado". Posso garantir que foi limpinho, limpinho... E também fui criticado por outros atletas, por ir na "mama", atrás do Rui Pedro. Todos sabem que sou rápido no final e que por isso vou atrás dos outros para ganhar no fim. Acredito que não tenha agradado ao Rui Pedro, mas ele não me disse nada. Os que me disseram isso não percebem que para chegar aos Aliados com o Rui Pedro é preciso correr muito. Nos oito anos em que ele ganhou, chegou sempre isolado. Portanto, para estar com ele corri muito, sofri imenso. Não vou mudar a estratégia de me guardar para os finais. Mas o Porto até foi diferente. Quando o Hélder Santos descolou e fiquei sozinho com o Rui Pedro, só pensei que tinha de aguentar nas costas dele para fugir aos outros. Queria ficar ali para ser segundo, que só isso já seria brutal! Só nos Aliados acreditei que podia ganhar; até aí vinha a fugir dos outros...
E ídolos fora do atletismo?
Isso é difícil. Passo horas a ver desporto. Devo ser daqueles que mais modalidades acompanha. Mas adoro o ciclismo. Por isso, diria Peter Sagan e Chris Froome. Gosto de futebol, admiro o Ronaldo, claro!, mas dou mais valor a atletas de desportos individuais.
"Sou sportinguista, mas sei separar as águas"
Tem um clube preferido?
Sou sportinguista de coração.
Se for contratado pelo Benfica é um problema?
Nem pensar. Tenho perguntado a muitos atletas qual o seu clube e já percebi que muitos do Sporting são do Benfica, ou vice-versa, ou do FC Porto. É preciso separar as águas. Se um dia vestir a camisola de um clube rival do Sporting, darei tudo por esse clube. Aliás, já roubei a vitória ao Sporting na S. Silvestre do Porto...