O perfil de João Almeida: tenacidade consolidou-o como um dos grandes voltistas do pelotão
Ciclista português terminou este domingo o Tour no quarto lugar
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João Almeida, o introvertido ciclista que nunca desiste, consolidou-se este domingo como um dos melhores voltistas do pelotão, reforçando o seu lugar histórico na modalidade em Portugal graças à crença nas suas capacidades e uma tenacidade invejável.
O jovem de A-dos-Francos vive numa bolha. Confiança, só dá às suas pessoas, um núcleo duro constituído, essencialmente, por família, namorada, empresário. Sempre que pode, esquiva o foco mediático, os jornalistas e até os adeptos, preferindo resguardar-se no seu mundo.
Entrevistá-lo pode ser um desafio, embora esteja cada vez mais solto e à vontade – talvez uma consequência lógica da exposição que tem tido nos últimos quatro anos -, mostrando-se descontraído e elaborando mais as respostas anteriormente telegráficas, como já fazia antes quando a língua do diálogo era o inglês.
Quem com ele trabalhou, elogia-lhe o profissionalismo, mas também dá conta de alguma teimosia e distração, as mesmas que foram responsáveis pelos seus conhecidos erros de colocação, quase totalmente ausentes nesta edição do Tour, onde esteve irrepreensível a escoltar Tadej Pogacar mas também a colocar-se no pelotão em etapas traiçoeiras, salvo raras exceções.
A evolução de Almeida enquanto voltista foi ainda mais evidente nesta Grande Boucle do que tinha sido quando terminou no pódio do Giro'2023, pelo simples facto de em França ter corrido contra os melhores corredores mundiais e só ter perdido para os superlativos Pogacar, Jonas Vingegaard, o bicampeão das duas edições anteriores, e Remco Evenepoel.
Transformado em escudeiro de luxo do esloveno – como já o tinha sido na Volta à Suíça de Adam Yates -, o ciclista português foi eleito gregário da semana após as nove primeiras etapas, depois de ter impressionado, sobretudo, na subida ao Galibier, onde trabalhou mais do que ninguém – e se desentendeu com o egoísta Juan Ayuso.
Na estreia do Tour, voltou a exibir a consistência e o conhecimento pessoal que o tornam um caso único no pelotão – as suas recuperações nas etapas de montanha são já uma característica elogiada por fãs de todo o mundo e inspiradoras de memes – e a fazer história, ficando apenas atrás de Joaquim Agostinho, terceiro nas edições de 1978 e 1979, na lista dos melhores portugueses de sempre na prova.
“É uma pessoa muito segura, mesmo quando não corre assim tão bem, em relação às perspetivas dele, a moral é sempre alta. Nunca vai para a corrida derrotado. E, depois, é uma pessoa calma, não se enerva, não pensa que vai correr mal. E ele cresce quando é líder”, resumia, em 2020, José Poeira, à Lusa, depois de Almeida ter feito sonhar o país com os seus 15 dias de rosa e ter sido quarto na geral final dessa Volta a Itália.
Embora neste Tour essa qualidade elogiada pelo selecionador nacional tenha estado escondida, porque o português esteve 100% entregue ao trabalho em prol de Pogacar, houve outra, a inabalável crença em si próprio, que foi bastante evidente, aliás como já o tinha sido quando foi terceiro no Giro'2023 e declarou que ia estar no Tour'2024, independentemente da opinião da direção da UAE Emirates.
Este domingo, com o seu quarto lugar final, demonstrou que tinha razão e que a sua estreia na maior prova velocipédica mundial até pode ter pecado por tardia, e confirmou aquilo que José Poeira percebeu mal o caminho dos dois se cruzou.
O selecionador nacional conhece o corredor de A-dos-Francos, que antes de se render ao BTT e, posteriormente, ao ciclismo de estrada, ainda andou no futebol e até no rancho folclórico local, desde que o convocou para um estágio de cadetes e ficou impressionado com a prestação do miúdo, quer nos testes progressivos, que detetaram que este tinha “capacidades muito acima da média em relação aos outros cadetes”, quer no treino conjunto com os juniores, em que atacou numa subida para ser apanhado lá no alto por apenas três ciclistas do escalão superior.
Não foi o único: em 2017, com apenas 19 anos, foi contratado pelos búlgaros da Unieuro Trevigiani, uma porta internacional que se abriu e o levou, inevitavelmente, à fábrica de talentos da Hagens Berman Axeon, onde esteve duas temporadas antes de dar o salto para a então melhor equipa mundial, a Deceuninck-Quick Step.
Foi na formação belga que este confesso fã de Fórmula 1 primeiro se notabilizou, naquele Giro'2020 de boa memória. Mas seria 2021 o ano da confirmação de Almeida e, também, o do seu polémico divórcio com a Deceuninck-Quick Step; iniciou a temporada com um terceiro posto na Volta aos Emirados, foi sexto no Tirreno-Adriático e chegou à Volta a Itália como co-líder juntamente com Evenepoel.
A liderança repartida fez correr rios de tinta, com a rivalidade com Remco a ser alimentada, essencialmente, desde Portugal, quer por comentadores, quer por adeptos recém-chegados ao ciclismo, incapazes de analisar friamente o facto de o português ter perdido muito tempo na quarta etapa e de o belga estar à sua frente na geral. A polémica continuou até ao abandono de Evenepoel, com Almeida, como já é seu hábito, a ir de mais a menos e a galgar posições, até terminar em sexto, empatado em tempo com o quinto, o colombiano Daniel Martínez (INEOS).
Apesar de ter vencido a Volta à Polónia e a Volta ao Luxemburgo, a parceria entre o então campeão nacional de contrarrelógio e a Deceuninck-Quick Step estava condenada, com o corredor de A-dos-Francos a deixar-se seduzir pelos milhões de UAE Emirates, entre as várias ofertas que teve em cima da mesa.
O primeiro ano na equipa dos Emirados, cuja concentração de estrelas e líderes nem sempre torna fácil a coabitação em corrida, pareceu de adaptação: além do título de campeão nacional de fundo, venceu uma etapa na Volta à Catalunha – foi terceiro na geral - e outra na Volta a Burgos - onde foi segundo no pódio final -, mas viu-se ultrapassado na hierarquia na Vuelta, por um Juan Ayuso, que, com 19 anos, foi terceiro numa geral vencida por… Evenepoel.
Quinto nessa Vuelta – haveria de subir a quarto com a desclassificação de Miguel Ángel López -, o sempre impassível Almeida não se deixou perturbar e traçou o seu percurso com segurança na temporada seguinte, na qual foi terceiro no Giro (e nono na Vuelta).
Na corsa rosa, surgiu com uma confiança renovada e também mais atento à colocação em corrida, mais respaldado pela sua equipa e com uma nova postura atacante, visível também esta temporada na Volta à Suíça, onde ganhou duas etapas, foi segundo noutras duas e também na geral, a meros 22 segundos de Yates, para quem trabalhou.
Este domingo, apesar de um início de temporada atribulado, adiado devido a doença, tornou-se no primeiro português a fechar as três grandes nos cinco primeiros lugares, algo que nem Agostinho conseguiu.