Ilha de Man TT, a corrida contra a morte: "Foi muita malta que ficou na estrada..."
TT Road racing tem na Ilha de Man o seu último bastião. Mas desde 1907 já são 267 as mortes nesta corrida de motos única. Nuno Caetano, piloto português que disputou cinco edições da competição considerada a mais perigosa do planeta, conta a O JOGO como é "voar" sobre estradas onduladas, entre muros e postes.
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Com velocidades máximas de 321 quilómetros por hora e médias de mais de 217, que permitem fazer os 60 quilómetros de percurso em menos de 17 minutos sobre estradas onduladas e com saltos, entre muros de pedra, árvores e postes, a linha entre a glória e a tragédia é tão fina como um cabelo. É o Ilha de Man Tourist Trophy (TT), prova de motociclismo iniciada em 1907 e considerada a mais perigosa do road racing no planeta. Até agora, as estradas da ilha situada no Mar da Irlanda reclamaram 267 vidas de pilotos. A edição 2023 já começou, depois de uma semana de treinos das várias categorias em disputa, incluindo sidecars.
Apaixonado pela velocidade e pelos motores, o português Nuno Caetano participou em cinco edições, nas mais variadas categorias, das quais a Senior TT é a rainha. "A margem de erro é muito reduzida", reconhece o agora piloto de ralis e rampas, explicando a O JOGO que uma "preparação muito boa" é fundamental para diminuir "o risco considerável" de pilotar naquele percurso de 60,72 quilómetros. "Essa preparação demorará uns três anos. O teu cérebro precisa de estar muito ativo, a desenhar todos os pontinhos que se aprendem do percurso. É muito trabalho e muito cérebro, já ao nível do subconsciente. É preciso dar muita volta, praticar muito, andar lá uns cinco ou seis dias durante a primeira metade do ano, percorrer o trajeto também de carro. E hoje em dia está tudo facilitado pela utilização de simuladores", conta, revelando que antes de embarcar para esta aventura, em 2011, socorreu-se de uma consola de jogos para se preparar: "Na altura, já com a Playstation 3 ou 4 no mercado, tive que comprar a 2 porque tinha um jogo que era uma simulação espectacular do TT da Ilha de Man."
A estrada "é quase toda em V e tem saltos, mas essa é a beleza daquele circuito", aponta Nuno Caetano, garantindo que, com a tal preparação de que falou, "consegue-se andar bem e rápido", e lembrando que para ganhar ali "é preciso andar no limite". A primeira vez que correu no circuito "não foi tão romântico como se possa pensar". A primeira volta "é feita atrás de um marshall" e a segunda "é complicada", recorda, recorrendo aos aviões para fazer a comparação: "Deve ser parecido a pilotar um avião sozinho pela primeira vez." Já conhecedor do percurso graças ao Manx TT, outra prova de motociclismo que decorre durante o ano, o piloto luso explica que a solução é "ir atrás dos "galos velhos"", participantes que conhecem o traçado melhor que ninguém. "É viciante", confessa. "Vamos ficando mais rápidos e há o desafio de conseguir melhores tempos. É divertido conduzir lá."
Nuno Caetano quase nos 200 km/h
Nuno Caetano tornou-se presença habitual na ilha (quatro anos no IOMTT e um no Manx TT, num total de 20 corridas), onde pilotou sempre uma Kawasaki, de "600, 650 e 1000 cc". "A minha melhor média foi de 124 milhas por hora [199, 5 km/h]. Nas máquinas sempre ostentou a frase "visit Portugal". Agora é piloto de ralis e de rampas.
NÚMEROS E FACTOS
Hickman como uma bala
Peter Hickman tem a volta mais rápida ao traçado de 60,72 km: 16, 42.778 minutos, à média de 217,989 km/h, ao comando de uma BMW S1000 RR, em 2018.
Últimos 40 anos tiveram vítimas
A última edição que não teve mortes foi em 1982. No total, 267 pilotos perderam a vida - ou 282 incluindo comissários, espectadores e fatalidades fora de competição.
Joey Dunlop vezes 26
Joey Dunlop, já falecido, é o recordista de vitórias, com 26. Seguem-se dois pilotos ainda em atividade: John McGuinness e o seu sobrinho Michael Dunlop, ambos com 23, este depois ter ganho sábado e domingo.
Ponteiro vai aos 321 km/h
O percurso é feito seis vezes, num total de pouco mais de 360 km. A velocidade máxima atingida é de 321 km/h, recorde de Hickman. Os pilotos partem de dez em dez segundos, em contrarrelógio.
"O Paul foi treinar e nunca mais voltou"
Em 2016, Nuno Caetano retirou-se das corridas de motos, depois de dezena e meia de pessoas "com quem privava" terem "perdido a vida". Paul Shoesmith foi uma delas e colocou, definitivamente, ponto final à tentação que o português sentia, nesse mesmo ano, de voltar a correr. "Fui ver as corridas à Ilha de Man e ia aconselhar-me com ele. Deixei as minhas coisas na carrinha dele e estávamos a conversar quando ele foi dar uma volta para "esticar a corrente". "Depois falamos", disse. Não voltou, foi a última vez que o vi", conta, sem qualquer arrependimento por ter colocado ponto final na carreira. "Morreu-me um amigo, uma pessoa que tinha boa atitude e que era ultrarresponsável", lamenta.
"Fui acumulando pequenas mazelas, sustos, e cheguei à conclusão que tinha feito mais do que esperaria. Foi muita malta que ficou na estrada", explica, recordando também Luís Carreira, outro amigo, português, que andou por Man e morreu nas corridas de Macau. Sem sustos relevantes na prova que começa na capital Douglas, Nuno sentiu de perto a tragédia com a morte do japonês Matsushita, em 2013. "Ele ultrapassou-me e passados dois ou três quilómetros caiu e morreu", recorda, não escondendo que depois de um drama desses "é natural que os outros pilotos se retraiam".
Todo este risco já levou ao cancelamento de várias provas de TT este ano, por falta de seguros, conta o português, convencido que "o road racing é um desporto em vias de extinção" e que "a última luz a apagar-se será na Ilha de Man".
A maldição caiu sobre os Dunlop
O nome Dunlop é sinónimo de pilotos de sucesso, mas também de tragédia. Atualmente, Michael perpetua o apelido no TT, aparentemente alheio às mortes do tio Joey (2000), do pai Robert (2008) e do irmão William (2018). Robert faleceu durante os treinos da TT North West 200, onde os filhos também participavam. No dia seguinte, Michael e William não faltaram à corrida e o primeiro ganhou-a. "Não é uma pessoa muito aberta, ao contrário do William, que era de trato fácil. Continuo surpreso por ele continuar", atira Nuno sobre o piloto norte-irlandês, sempre candidato à vitória. No ano passado, nos sidecars, Roger e Bradley Stockton, pai e filho, perderam a vida. Os mais velhos dizem que entrar nesta corrida "é como ir para a guerra".