Depressão continua a "roubar" talentos ao ciclismo: "Comecei a chorar na bicicleta..."
Jovem promissor de 21 anos, integrado na equipa de desenvolvimento da Groupama-FDJ, anunciou este mês que punha um ponto final na carreira, entre o desencanto com os novos métodos de treino e preparação do ciclismo e a falta de motivação.
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A relação conturbada entre a depressão e outros distúrbios de saúde mental e o ciclismo profissional continua a afastar talentos da bicicleta, com Théo Nonnez (Groupama-FDJ), o último exemplo de abandono, a citar a hiper profissionalização como problema.
O jovem promissor de 21 anos, integrado na equipa de desenvolvimento da formação francesa, anunciou este mês que punha um ponto final na carreira, entre o desencanto com os novos métodos de treino e preparação do ciclismo e a falta de motivação.
No início do ano, foi o holandês Tom Dumoulin, campeão da Volta a Itália de 2017, a anunciar que ia afastar-se por tempo indeterminado, para se reencontrar com o ciclismo e as motivações para seguir em frente.
São dois exemplos recentes de uma relação problemática entre questões de saúde mental, como a depressão, a ansiedade e o burnout, e o ciclismo profissional, que afeta tanto nomes mais desconhecidos como grandes campeões, de Bradley Wiggins a Marco Pantani.
"Tomei esta decisão depois de um longo período de reflexão. Acho que podemos chamar-lhe burnout, embora seja mais um somatório de muitas coisas que me levaram para este lugar", começou por explicar Nonnez.
Numa longa entrevista publicada pela equipa aquando do anúncio, afirmou que, ao contrário de tristeza, o abandono dava "esperança de novo", por quebrar "um círculo vicioso".
Promissor trepador, com vários títulos em categorias etárias inferiores, Nonnez preparava-se para dar o salto para outro patamar quando se confrontou com perda de motivação e peso, culminando num episódio em treino que o fez mudar de perspetiva.
"Após uns minutos, fui abaixo. Comecei a chorar em cima da bicicleta. Aí, disse a mim mesmo: "Théo, tens de deixar tudo isto. Tens de mudar, alguma coisa está errada"", conta.
A pensar no ciclismo "a respirar, a acordar, a comer", com toda a vida dedicada, o jovem identificou um problema recorrente: a dedicação extrema e a estratificação dos hábitos, de treino, de alimentação, e de controlo, impõem limites e barreiras elevadas na vida em função de uma carreira.
Depois de parar no final do ano de 2020, por dois meses, nem pegou na bicicleta, e sentiu-se "numa fase de extrema solidão", com "muita fraqueza", questionando-se constantemente.
"Estava quase neste lugar: "Qual é o ponto de viver?". Pode parecer duro, é como é. Não conseguia ver significado na vida", lamenta.
A pandemia de covid-19 fê-lo aperceber-se de que a bicicleta e, sobretudo, os treinos, não o faziam feliz, nem divertiam, e depois chegou a culpa, porque "este é um trabalho de sonho para muitos" que ele agora desperdiçava.
O confinamento trouxe mais problemas: nutrição, por exemplo, algo que ultrapassou com a ajuda do nutricionista da equipa, que, aliás, sempre o apoiou a todos os níveis da estrutura.
"Talvez não tenha sido feito para o ciclismo. Na vida, toda a gente tem obstáculos e sacrifícios. Precisas de encontrar a vida que encaixa melhor e que estás pronto a aceitar. Quero sentir-me útil, não quero que tudo seja desperdiçado. Se a minha experiência pode ajudar outros, fico feliz", acrescentou.
Como conselho para outros que possam sentir o mesmo, lembra que o melhor é "falar sobre isso", até por não ser uma questão tabu, nem complicada, e por permitir "escolher outro caminho", como ele próprio: a equipa pagou por um curso de comunicação, e espera voltar noutras funções.
Na terça-feira, foi o espanhol Alberto Contador a comentar o "excesso de competitividade e pressão" que leva a retiradas prematuras.
O madrileno, único espanhol que venceu as três "grandes Voltas", com dois Tour, três Vuelta e dois Giro, destacou uma mudança "no aspeto psicológico" do desporto.
"Os corredores têm mais pressão, mais responsabilidade, e isso faz com que alguns deixem a carreira antes do tempo. [...] Daria 50% ao físico e a outra metade ao mental, não se ganha o Tour sem ser muito forte em ambos", referiu o espanhol, agora com 38 anos.
Com 89 vitórias profissionais, 14 das quais na Volta a França, o alemão Marcel Kittel decidiu parar em 2019, evocando fadiga e falta de motivação, o mesmo ano em que o britânico Pete Kennaugh também o fez.
José María Jiménez deixou o desporto em 2002 para receber tratamento psicológico, morrendo de ataque cardíaco um ano depois, enquanto Frank Vandenbroucke e Marco Pantani associaram a depressão aos problemas com abuso de drogas, com finais igualmente trágicos.
Na pista, a história da norte-americana Kelly Catlin é conhecida, depois de ter cometido suicídio em 2019, após sofrer uma concussão que a afastou de um desporto no qual conquistou três títulos mundiais e uma prata olímpica, no Rio2016.
O escocês Graeme Obree, várias vezes campeão do mundo na pista e antigo detentor do recorde da Hora, deixou o desporto pelo próprio pé após três tentativas de suicídio, enquanto o britânico Bradley Wiggins, campeão olímpico e primeiro britânico a vencer o Tour (2016), fala frequentemente dos problemas com álcool e depressão.