"Crise nas provas de fundo? As coisas muitas vezes caem de mão beijada em alguns atletas"
Fernanda Ribeiro divide culpas na crise fundista.
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A inédita razia de maratonistas e a presença exígua de três portugueses nas provas de meio-fundo e fundo dos campeonatos do mundo de atletismo de 2022 têm culpas diversas, alerta Fernanda Ribeiro, campeã olímpica em Atlanta'1996.
"Há muito tempo que não têm aparecido muitos atletas no meio-fundo. Ouve-se sempre que é por falta de apoio, mas não quero acreditar nisso. Muitas vezes, a desculpa é que, na altura da Fernanda Ribeiro e da Manuela Machado, não havia atletas africanas, mas elas existiam e as chinesas também. Na minha altura, em que havia mais meio-fundistas, a vida era mais difícil e não tínhamos tanta coisa", justificou à agência Lusa a vencedora da terceira das cinco medalhas de ouro conquistadas por Portugal nos Jogos Olímpicos.
Na 18.ª edição dos Mundiais, que vão decorrer entre sexta-feira e 24 de julho, na cidade norte-americana de Eugene, Isaac Nader e Marta Pen, ambos nos 1.500 metros, são os corredores nacionais em provas de meio-fundo (dos 800 aos 3.000), enquanto Mariana Machado, nos 5.000, é a única portuguesa integrada no fundo (dos 5.000 à maratona).
"Falo pela minha experiência como atleta. Sempre achei muito importante haver estágios de meio-fundo, pois era aí que nos encontrávamos todos. Neste momento, não se pode dizer também que a culpa seja só da Federação Portuguesa de Atletismo (FPA), porque quantas vezes são os atletas que não querem ir. Ao terem o direito de realizar estágios individuais, escolhem aqueles que acham melhor", atirou a campeã mundial dos 10.000 metros em 1995, que também arrebatou duas pratas (1995 e 1997) e um bronze (1997).
Se a promissora Mariana Machado entrou através do ranking na sexta maior delegação nacional de sempre, com 23 atletas, a exclusão de Solange Jesus, que tinha marca de qualificação, deixa Portugal ineditamente sem maratonistas em campeonatos do mundo.
"Os maiores fundistas eram aqueles que sofriam mais e, se calhar, vinham do nada. No meu tempo não existiam quotas. Nem sei se são mais fáceis nas [disciplinas] técnicas ou para o meio-fundo, mas existiram muitas mudanças face ao meu tempo. Antigamente, se não tivéssemos uma marca, não íamos representar o país", constatou Fernanda Ribeiro.
Recordista nacional dos 5.000 (14.36,45 minutos, estabelecido em 1995) e dos 10.000 metros (30.22,88, em 2000), a terceira colocada na mais longa distância disputada em pista em Sydney'2000 descarta que as marcas de qualificação estejam mais exigentes.
Na maratona, Solange Jesus, que vai disputar os Europeus, entre 6 e 12 de agosto, em Munique, na Alemanha, ostentava para Eugene uma marca pessoal de 02:29.04 horas, alcançada em Paris, em 3 de abril, abaixo das 02:29.30 exigidas pela World Athletics.
De fora ficaram ainda Ana Dulce Félix, Jéssica Augusto e as três maratonistas presentes nos Jogos Olímpicos Tóquio'2020, casos de Carla Salomé Rocha - única representante lusa nos Mundiais de Doha'2019 (28.ª colocada) -, Sara Catarina Ribeiro e Sara Moreira.
"Os nossos atletas é que estão a correr muito menos do que aquilo que nós corríamos. Antes, tínhamos não sei quantos a fazer, por exemplo, 01:00 ou 01:03 horas numa meia-maratona e agora só temos um ou dois e só de vez em quando. Também estávamos presentes nas provas de 5.000 e 10.000 metros. Acho que [a razia] não tem a ver com marcas, mas com os atletas que têm aparecido e que não têm sido muitos", sustentou.
Ressalvando "algumas dificuldades" em outras latitudes, ligadas ao domínio dos países africanos, Fernanda Ribeiro lamenta a ausência de medalhas portuguesas no meio-fundo e fundo em Mundiais desde o bronze obtido por Rui Silva, nos 1.500 metros, em 2005.
"Até agora, tínhamos as fundistas femininas a participarem quase sempre nestas provas, enquanto os homens já há bastante tempo que não se encontram tanto. A idade também vai passando por elas e não têm surgido muitas jovens. Seja como for, várias vezes vejo atletas que ficam contentes por pouco. Quando era criança, o meu sonho era ser melhor do que a Rosa Mota. Penso que muitas vezes essa ambição já não é tanta", adicionou.
Esse declínio notório da joia da coroa do atletismo nacional, que se elevou nas últimas duas décadas do século XX com Carlos Lopes, Fernando Mamede, Domingos Castro, António Pinto, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro ou Manuela Machado, entre outros, tem sido contrabalançado com um ascendente de resultados nos saltos, lançamentos e marcha.
"Se calhar, fazer meio-fundo ainda dói bastante. Falo por mim, pelo sacrifício que tive e por aquilo que aprendi a sofrer e a procurar. Neste momento, acho que as coisas muitas vezes caem de mão beijada em alguns atletas. Converso muito com os antigos atletas e todos têm o mesmo pensamento: os estágios entre mais novos e mais velhos eram importantes, porque era ali que convivíamos, treinávamos juntos e levávamos as coisas muito a sério. Provavelmente, os mais novos já não têm o mesmo pensamento", frisou.
Em Eugene, Fernanda Ribeiro, de 53 anos, vê como "meta comum" nos atuais fundistas Isaac Nader, Mariana Machado e Marta Pen o acesso às respetivas finais nos Mundiais, em que Portugal já venceu 22 medalhas (seis de ouro, sete de prata e nove de bronze).