Como um português fez história no andebol de Cabo Verde... e há quem ainda não acredite
Treinador português, de 66 anos, que também foi preparador físico da Seleção Nacional, Benfica e Sporting de... hóquei em patins, fez história no andebol cabo-verdiano.
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Com pouco tempo e sem as melhores condições, José Tomaz e o adjunto Rui Ferreira deitaram mãos ao trabalho e, de forma algo inesperada, qualificaram Cabo Verde para o Campeonato do Mundo de andebol do Egito'2021. "Foi um momento especial. Há já alguns anos que estava afastado da alta competição, mas congregamos um bom espírito de equipa, os resultados apareceram e foi um orgulho fazer parte desta oportunidade", recordou José Tomaz, 66 anos, a OJOGO, lembrando ainda que "esta foi a primeira participação de Cabo Verde na CAN [Campeonato Africano das Nações], pelo que tudo é histórico".
Com isto, Tomaz e Ferreira já têm acordo para fazer o Mundial e ainda a próxima CAN, que se jogará em Marrocos. "Tenho um acordo verbal para fazer este Campeonato do Mundo e a próxima CAN, que é em Marrocos, em 2022, prova na qual teremos de arranjar condições para apontar ao pódio", confirmou o antigo treinador de Campo de Ourique, CDUL, Sporting, Encarnação, Belenenses, Loures e Passos Manuel e ainda preparador físico da Seleção Nacional e das equipas seniores de Benfica e Sporting de hóquei em patins.
"Que haja verbas para um uma boa preparação e para a equipa estar em condições de participar e honrar o nome do país"
"Em equipa que ganha não se mexe e a nossa ideia, se possível, é ficar com o professor muitos anos", admitiu Nelson Martins, presidente da Federação Cabo-verdiana de andebol, que também falou a O JOGO. "Estou muito orgulhoso e feliz com este apuramento, agora espero que nos deem condições para nos prepararmos e termos uma participação condigna. Sabemos que não vai ser fácil, temos uma leve noção do que é ir a um mundial, é muita responsabilidade financeira e esperemos que o dinheiro apareça, com o apoio de todos, do Governo e das entidades privadas, Que haja verbas para um uma boa preparação e para a equipa estar em condições de participar e honrar o nome do país", apelou o líder federativo.
"Esta participação no Mundial requer mais tempo de treino, implica mais alguns recursos para fazer estágios e uma melhor preparação", concordou o treinador português, natural de Lisboa, lembrando que "de início não tínhamos uma história, mas neste momento sabemos que somos a quinta equipa africana". Mais, Tomaz fez questão de "agradecer a Benfica, Boa Hora e Almada, que se dispuseram a jogar com Cabo Verde durante a preparação para a CAN", que decorreu no Centro de Estágio da Cruz Quebrada e com o apoio do IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude) ao abrigo do protocolo com Cabo Verde
"Motivamos a equipa pelo sentido de pertença de um país de fracos recursos"
Esta história, com um final feliz, até teve um início atribulado. "Tivemos muitas dificuldades e um treinador em cima da hora, já que era para ser outra pessoa. Quem? Era para ser o professor Luís Monteiro, mas desculpou-se a cinco dias do estágio e tivemos que arranjar um treinador à pressa", relatou o líder da federação de Cabo Verde. "Foi-nos sugerido o professor José Tomaz, pelo próprio Luís Monteiro, e chegamos até ele. Fomos tentar saber quem era, pesquisamos e quando falamos com ele aceitou prontamente e fez um excelente trabalho", elogiou.
"Motivámos a equipa pelo sentido de pertença de um país de fracos recursos. Era a primeira vez que aparecia num campeonato desta exigência, e apelamos ao espírito de equipa, unidade e coesão. Eles são extremamente patriotas e foi muito com isso que conseguimos este resultado", recordou ainda Tomaz, cuja maioria dos atletas que comanda atua em Portugal. Elledy Semedo, do Madeira SAD, Gualter Furtado e Rafael Andrade, ambos do Avanca, Délcio Pina, do ISMAI, Bruno Landim, do Sporting da Horta, são alguns exemplos, sendo que há mais, das divisões secundárias e até da II Divisão da Alemanha (Ivo Santos) e França (Flávio Fortes, ex-Benfica).
"Motivamos a equipa pelo sentido de pertença de um país de fracos recursos"
Um dos jogadores que mais se destacou foi Leandro Semedo, um ex-FC Porto, onde esteve seis temporadas, agora a jogar em Espanha, ao serviço do Anaitasuna. "Foi uma sensação única. Há dias estava a falar com um colega e dizia-lhe que ainda não acreditava. Fomos convidados, éramos desconhecidos e fomos fazendo o nosso caminho, passo a passo", começou o lateral-esquerdo. "Como já tínhamos feito algumas competições nos escalões jovens, havia algum conhecimento dos adversários, não grande, mas algum. Sabíamos que os cinco primeiros iam ao mundial, mas era muito difícil, jogo a jogo conseguimos ficar em quinto, foi um feito enorme e o apuramento para o mundial foi a cereja no topo do bolo", assumiu.
Leandro, de 25 anos, feitos a 24 de dezembro, já deita também um olhar ao Campeonato do Mundo do Egito, indo até mais longe: "Sinceramente, acho que vai ser igual ao africano, vai ser o viver de um sonho, vamos chegar lá como desconhecidos e vamos tentar fazer o nosso caminho com humildade. Mas quero dizer que o andebol em Cabo Verde não está a ser apoiado, os jogadores que jogam lá estão a ficar para para trás em relação aos que estão na Europa e é preciso fazer um pouco mais em Cabo Verde para que quem saía não sinta tantas dificuldades".
Convidado por O JOGO a recordar o seu próprio exemplo, quando chegou aos dragões, pela mão de José Magalhães, com apenas 18 anos, Leandro começou por falar numa "enorme diferença", relatando: "Lá, em Cabo Verde, eu era visto como um dos melhores pivôs nacionais e no FC Porto sentia que, de zero a dez, eu era era um e os outros todos dez... Além disso, logo de início transformei-me em lateral-esquerdo, com o [Ljubomir] Obradovic e agora não troco lateral-esquerdo por nada".
"Este foi o maior feito do desporto coletivo Cabo-verdiano e, em menos de um mês, caiu no esquecimento do povo e do Governo"
Leandro Semedo, grande figura da equipa e capitão, deixou ainda dois recados. "Tivemos uma participação apertada, porque a federação tinha um um orçamento de 7/8 mil contos cabo-verdianos [70/80 mil euros] e governo só deu 4 mil contos [40 mil euros]", foi o primeiro e com destinatário claro.
A seguir, dizendo-se "muito triste", atirou: "Este foi o maior feito do desporto coletivo cabo-verdiano e, em menos de um mês, caiu no esquecimento do povo e do Governo. Acho que as pessoas deviam olhar para as outras modalidades e não apenas para o futebol. O andebol tem sido das poucas, senão mesmo a única modalidade, a conseguir conquistas a nível internacional. Em 2014 fomos campeões da zona 2 do Challenge Trophy africano, no mesmo ano fomos campeões do Challenge Trophy africano e também fomos vice-campeões intercontinentais da mesma competição. Agora, fomos quintos na CAN e vamos ao Mundial. Merecíamos muito mais apoio".