Opinião de José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal.
Corpo do artigo
As palavras contam e muito. São um suporte dos mecanismos de comunicação. E o seu uso social vai progressivamente, em alguns casos, alterando o seu sentido original. A palavra desporto tornou-se, nos dias de hoje, um território ilimitado. Tudo ou quase tudo o que mexe é considerado desporto, tal é a elasticidade do conceito.
Caminhar na beira da estrada passou a ser desporto. Pedir a uns idosos que lancem umas bolas ao ar e batam umas palminhas antes de voltar a agarrar é desporto. Ir para o emprego de bicicleta é desporto. A dança do varão requer igual estatuto. E os e-games para lá caminham.
A excelência desportiva e o desempenho corporal banalizaram-se e o valor político de um vencedor de uma modalidade ou disciplina do desporto adaptado vale o mesmo que o campeão de uma modalidade olímpica. As políticas de inclusão, que são socialmente desejáveis, transformam-se em políticas de igualização perante realidades desportivas que são distintas.
Uma competição à escala do bairro, ou de um pequeno leque de participantes, premeia o vencedor com uma medalha a que chama de ouro, como se de um campeonato do mundo ou uma competição olímpica se tratasse.
As organizações desportivas, que deveriam ser as primeiras guardiãs da identidade do desporto, estão impotentes para travar esta deriva e, em alguns casos, acompanham-na e estimulam-na.
O discurso político, das redes sociais e dos meios de comunicação social, vai atrás.
O predomínio do carácter utilitário (fazer bem à saúde) e individualista da atividade física e a sua cultura monolítica, que se abrigou à sombra do desporto, é um dos fatores, que não o único, que está a contribuir para o declínio do carácter lúdico e gregário das práticas desportivas, com reflexos na dinâmica das práticas federativas.
A captura do desporto por parte do ativismo físico e pela pastoral dos estilos de vida saudáveis tem destruído o paradigma em que se construiu. Um verdadeiro tsunami. Não percebendo o que se estava a passar nas sociedades contemporâneas - medicalização da vida, sedentarismo, comercialização da prevenção para a doença - defendeu-se da pior maneira. Não separando o que lhe era próprio - a passagem do modelo formal de desporto para modelos plurais - com o que lhe era estranho: a higienização dos comportamentos por via das práticas desportivas. E deixou-se vencer por aqueles que venceu em finais do século XIX: os higienistas.
Agora tudo o que mexe é desporto. Ou pelo menos não lhe é estranho. E faz bem à saúde! Desmedicalizou-se o conceito de saúde e medicalizou-se o conceito de atividade física, associando-o ao desporto. Passou a ser uma espécie de remédio para todas as doenças! E crescentemente dá-se mais atenção à agitação física do que à promoção do desporto, que é complexa e exige ensino, organização, persistência, treino e competição. E não tem resultados imediatos.
As organizações desportivas, com as federações internacionais à cabeça, hibernaram e não tiveram tempo, nem paciência, para refletir sobre o que se estava (e está) a passar no universo das práticas que dirigem. Descapitalizaram o pensamento. E aceitaram esta nova lógica. Compensaram a sua falta de reflexão com a integração de novos domínios que, supostamente, favorecem a sua missão prioritária.
As políticas públicas desportivas passeiam acriticamente neste universo de confusões, misturando ativismo físico com desporto.
As autoridades europeias vagueiam, perdidas em cimeiras rotineiras e em declarações de princípio onde abundam os lugares comuns. Ignoram e parecem não perceber o que está a ocorrer.
Restam as franjas de alguma produção académica e de alguma reflexão solitária. Pouco para tamanha empresa. Mas, apesar de tudo, é ainda o que temos!