"Não faltam casos de treinadores em Portugal que falharam os objetivos e continuam a treinar"
ENTREVISTA - Nuno Campos não entende como ficou privado de ser treinador principal, após breves passagens por Santa Clara e Tondela. Sente a desconfiança do meio e fala de muitos que fracassam e continuam a ter trabalho.
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Nuno Campos, de 48 anos, fala sem travões das sensações de uma carreira muito curta como técnico principal, após ter encerrado longa colaboração com Paulo Fonseca.
Que balanço faz das passagens por Santa Clara e Tondela, as experiências como técnico principal?
-Talvez a perceção que tenha passado é de que o balanço não foi bom, mas quem pensa assim não perdeu muito tempo a analisar. No Santa Clara, conseguiu-se algo que nunca tinha sido feito, a qualificação para a final four da Taça da Liga, com um triunfo sobre o FC Porto. A venda de jogadores foi impulsionada pelo futebol praticado. Há muita coisa visível, mas também há muita que as pessoas não sabem. Fui apanhado no meio de uma guerra de poder nos Açores. Fui contratado pelo João Ferreira - diretor desportivo na altura, agora na estrutura do Tottenham- que saiu um mês depois de eu ter entrado. Havia, isso é público, ordenados em atraso e fogos para apagar todos os dias. O presidente, Ismail Uzun, e mais uns amigos complicaram muito a vida do clube. Saí depois de ter feito quatro pontos nos últimos três jogos. Não saí devido a questões sobre competência e resultados. Saí porque, se calhar, o presidente queria fazer a equipa; já o tinha tentado antes e eu não tinha permitido. Queria que pusesse a jogar jogadores que ele nem sabia estarem lesionados. Se não fosse grave, era ridículo.
E quanto ao Tondela?
-Beneficiei do mérito da equipa e do meu antecessor. Deixaram as portas da final da Taça de Portugal escancaradas. Comandei a equipa no momento menos difícil, que foi carimbar a qualificação na segunda mão, em Mafra. Mas, da mesma forma que não fui o principal responsável pela chegada ao Jamor, também não me sinto réu na descida de escalão. Quem quiser analisar todos os parâmetros de golos esperados, perigo criado, a favor e contra, antes e depois da nossa chegada a Tondela, está lá tudo. Sustentam melhoria.
Foi possível conhecer algo do que pretende incutir às suas equipas?
-A imagem das minhas equipas é a de domínio, posse de bola e de ataque, proporcionando aos jogadores o prazer de ter a bola e a sua valorização. Estaria a mentir se dissesse que foi possível conhecer nestes projetos a verdadeira imagem que pretendo dar. No Santa Clara fiz seis jogos para o campeonato e no Tondela fiz oito. O Tondela não se manteve na I Liga, mas as pessoas acreditavam no trabalho, de tal forma que não renovei porque não quis. O clube não tinha meios para pensar no regresso ao escalão principal.
Sente-se olhado com desconfiança por essa entrada em falso?
-Por tudo o que tenho sentido, sou levado a concordar que a visão será essa, de que entrei em falso. Gostava de saber que treinador ao fim de 14 jogos ficou com um rótulo: 14 jogos! Numa pré-época tenho mais treinos aquisitivos do que com estes jogos disputados. Podia falar-se no feito extraordinário de ter colocado, na mesma época, uma equipa na final four da Taça da Liga e outra na final da Taça de Portugal. Competi nas principais provas europeias, ganhei títulos como braço direito do Paulo Fonseca, treinei jogadores de topo mundial, em Portugal, na Ucrânia e em Itália. Devia constituir uma vantagem. A verdade é que não faltam casos de treinadores em Portugal que falharam os objetivos traçados e continuam a treinar e a ser chamados para novos desafios. É irónico!
Consegue entender o que não esteve bem ou foi só julgado muito depressa?
-Cometi erros. Se me perguntar se teria feito tudo igual, seria desonesto dizer que sim. Talvez não tivesse aceitado o Santa Clara, talvez não tenha medido bem os prós e os contras. Uma estrutura diretiva pouco familiarizada com o futebol profissional, em que os amigos e o presidente iam no autocarro da equipa a filmar os batedores da polícia em Lisboa, como se estivessem numa produção cinematográfica, maravilhados com tal acontecimento e fazendo alvoroço minutos antes de importantes jogos. Os jogadores ficavam estupefactos e, das várias vezes que disse ao presidente para se conter, a resposta foi sempre, “sou o presidente e por isso faço o que quiser”. O Tondela teria sido perfeito se tivesse sido o primeiro convite. Quando o aceitei olhei para o plantel, informei-me e vi que era um clube à minha imagem. Acreditava que podíamos conseguir a manutenção. Ficámos a um golo do objetivo. Há números elucidativos e a verdade é que há um antes e um depois, com todo o respeito pelo meu antecessor. Talvez o erro maior tenha sido não falar abertamente desses projetos no final da época. A minha imagem junto dos dirigentes podia ser outra e talvez tivessem surgido mais oportunidades.
Cláusula para eventual saída está prevista
Nuno Campos garante estar de corpo e alma com Renato Paiva, mas também assegura ter informado o técnico do Toluca que tem ambições de retomar a carreira com competências máximas no banco.
Da saída do Tondela a este ingresso no Toluca, o que andou nos horizontes?
-Tirei um ano para concluir o IV nível, conhecer outras realidades, fui a outros países, conversei com muita gente. Recebi várias abordagens e só não assumi o comando técnico do Malmo, da Suécia, por não ter o IV nível. Tive mais convites na Europa, da Ásia, da América do Sul, do Médio Oriente. Uns acabaram por não se concretizar, outros rejeitei e o do Malmo inviabilizou-se. Estive próximo de ser adjunto de um clube campeão de uma liga europeia relevante e só não se concretizou por a língua ser um entrave, na ótica do clube. O mais importante é trabalhar e ser feliz, por isso, estou no México com o Renato Paiva. Temos ideias convergentes no que diz respeito à melhoria do jogo e do jogador.
Esta aposta inviabiliza o caminho como principal?
O caminho que tenho no futebol fi-lo pelo meu próprio pé. Nunca tive padrinhos nem ajudas. Se calhar isso faz falta em certos contextos. E se for preciso dar um passo atrás para dar dois à frente, não tenho qualquer problema em fazê-lo. Não vejo esta minha chegada ao Toluca como um passo atrás, nem ao lado. Vou conhecer uma nova realidade e trabalhar com um profissional que é um dos melhores treinadores portugueses da atualidade. E que muito me honrou o convite para que me juntasse a ele. Isso não invalida a minha ambição de me tornar treinador principal. Vai acontecer, mas o presente é o que conta, e eu estou muito feliz numa liga bastante conceituada.
O Renato está consciente das suas ambições?
-A única coisa que lhe pedi foi que, se surgisse um convite irrecusável para retomar a minha carreira, ele aceitaria libertar-me a qualquer momento. Tenho uma cláusula que que me dá essa liberdade. Mas estou de corpo e alma com ele e acredito que vamos fazer um grande campeonato. A forma como fomos recebidos foi fantástica, as condições são muito boas, ao nível do melhor que temos em Portugal. Os ordenados das equipas médias no México são similares aos dos três grandes. Estamos a falar de uma grande liga, muito competitiva, com bons estádios.
“Renato achava que não ia aceitar”
Como encara a separação do Paulo Fonseca, após ligação tão profícua?
-Foi algo decidido em conjunto e pensado a dois. Quando nos separámos, o Paulo estava muito próximo do Tottenham. O que me move não é o palco ou o dinheiro. É o desafio, o projeto, a felicidade com que vou todos os dias trabalhar. Passámos muitos anos juntos, mantemos uma amizade sólida. Precisava de concluir o IV nível e se calhar ambos precisávamos de seguir vias separadas no futebol. Desejo-lhe o mesmo que ele me deseja a mim: toda a sorte do mundo. E tenho a certeza que, depois do Lille, ele vai treinar equipas de topo em ligas de prestígio.
E que contributo espera dar ao Renato Paiva?
-Ele conhece-me muito bem. Tive a sorte de nos últimos 20 anos ter estado ao mais alto nível, nas melhores provas do planeta, com títulos obtidos e a jogar sempre para ganhar. É esta experiência que penso que fez com que o Renato pensasse que o posso ajudar. Ele já está a um nível muito alto, com equipas muito organizadas. Posso revelar que ele achava que eu não ia aceitar.
Habilidade mexicana para polir
“O jogador azteca é muito técnico e coloca muito empenho em todos os lances. O nosso projeto é de uma equipa grande que não luta pelos títulos assim tantas vezes, mas podemos deixar uma marca. Tem sido, e vai continuar a ser, um privilégio trabalhar com o Renato, as ideias coincidem com foco no detalhe”.
Os talentosos Morita e Quaresma
“Os melhores que apanhei foram Morita e o Lincoln, no Santa Clara! O Morita está a fazer-se figura importante nas opções de Rúben Amorim. Também destaco, noTondela, Sagnan, Neto Borges, Tiago Dantas e o Quaresma, que tem tudo para se afirmar, assim ele queira! O maior prazer é ver a evolução dos jogadores”.
Ter paciência traz recompensas
“Os grandes são aqueles que nos dão os melhores exemplos. Jorge Jesus esteve seis anos no Benfica, na primeira passagem, e venceu três campeonatos, Sérgio Conceição está na sétima temporada, Rúben Amorim está a iniciar a quarta no Sporting. E todos sabem que no fim só ganha um. E veja-se em Espanha os frutos colhidos pela Real Sociedad de Imanol Aguacil”.