Interdições de estádios têm-se revelado ineficazes para travar série de incidentes e os clubes têm sido acusados de promoverem a impunidade por não utilizarem de forma efetiva a "boa legislação" que têm à disposição para punirem os adeptos. Governo já abraçou o combate, mas tem esbarrado no complexo mundo do pós-pandemia.
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No dia 8 de setembro, num Montpellier-Marselha que se adivinhava pacato e com a "preguiça" própria de um duelo de início de temporada, Rongier, médio da equipa visitante, foi atingido por uma garrafa atirada por um adepto da casa e o incidente abriu a porta à explosão de uma onda de violência de Norte a Sul do país que tem deixado o futebol francês em estado de emergência.
De lá para cá ocorreram nove incidentes graves em jogos da Ligue 1 e da Taça de França e o apurar de responsabilidades tem motivado um jogo do empurra entre liga, federação, clubes e poder político, sem que se tenha chegado, ainda, a uma forma eficaz de travar a explosão de "hooliganismo" no país que ostenta os galões de campeão mundial.
As punições aos primeiros desacatos registados no interior e em redor dos estádios franceses incidiram sobre o encerramento provisório das bancadas ou setores destinados às claques e na distribuição de jogos à porta fechada, algo que serviu para aumentar o sentido de impunidade dos prevaricadores. "Na sequência dos episódios graves ocorridos no Nice-Marselha, a Comissão de Disciplina da liga não teve mão de ferro para punir os agressores e invasores de campo. Foi uma espécie de cartão amarelo, quando os culpados mereciam um vermelho. Isso deu a entender que era possível atirar garrafas de água aos jogadores e descer ao relvado para bater em toda a gente", salienta Eric Frosio, jornalista do L"Équipe e do France Football, em conversa com O JOGO. A eclosão de novos distúrbios veio demonstrar a fragilidade de sanções coletivas e, na opinião pública francesa, começaram a surgir os primeiros defensores da responsabilização individual e civil dos indivíduos que incorram em ações violentas.
"Estamos a testemunhar a necessidade de identificar os arruaceiros. Temos de nos lembrar que a medida mais efetiva para travar a violência passa pelo Tribunal banir essas pessoas de frequentarem estádios com a obrigação de se apresentarem numa esquadra à hora dos jogos. Quando incorremos num crime, temos de imputar as responsabilidades no criminoso e não na sociedade. Fechar estádios ou bancadas é ótimo para mostrar à Comunicação Social que se está a fazer algo, mas são medidas injustas. Entrámos nesse ciclo vicioso e vai ser difícil sair dele", afirmou Pierre Barthélemy, advogado da Associação Nacional de Adeptos Franceses e uma das vozes mais ativas no debate sobre a violência no futebol, em entrevista recente ao portal France-Info.
Criada em maio de 2016, a Lei Larrévy fornece ferramentas aos clubes para lidar com este flagelo, permitindo-lhes, por exemplo, recusar a venda de bilhetes a adeptos que tenham sido identificados como problemáticos num arquivo global computorizado. Considerando esta norma como uma arma poderosa, os poderes político e judicial têm resistido a implementar uma legislação mais dura neste combate e lamentam que as Direções não a apliquem de forma efetiva, acusando-as de se servirem dela para expulsar elementos que não estejam do seu lado. Apontados como os ónus do problema, os clubes, esses, defendem que não podem ter na sua esfera a responsabilidade exclusiva de punir os adeptos, pedindo uma intervenção ao mais alto nível.
"Paliativos" não convenceram
Perante a pressão da opinião pública, Gérald Darmanin (Ministro do Interior), Roxana Maracineanu (Ministra do Desporto) e Éric Dupond-Moretti (Ministro da Justiça) reuniram-se no passado dia 16 de dezembro com Noel Le Graet (presidente da Federação) e Vincent Labrune (presidente da Liga) para traçarem as diretrizes da luta contra a violência nos estádios. Do encontro saíram algumas medidas como a proibição de venda de garrafas de plástico, a instalação de redes de proteção entre as bancadas e o relvado, o desenvolvimento de um sistema anti-intruso em jogos de alto risco, a interrupção imediata de um jogo onde um jogador tenha sido ferido por um objeto arremessado pelo público e a revisão do estatuto de "steward", classe onde reina a precariedade e a falta de preparação para lidar com eventos graves como os que se têm verificado.
No entanto, a primeira aparição desta task-force acabou por ser alvo de "chacota" por ter ocorrido 24 horas antes dos distúrbios no jogo Paris FC-Lyon para a Taça de França, cujos castigos vão ser anunciados na próxima terça-feira. "Neste país há todo um ecossistema que não permite punições exemplares. As autoridades lavam as mãos e exigem que os problemas sejam resolvidos na esfera desportiva, a liga e a federação protegem os presidentes dos clubes e estes são incapazes de conversarem e apresentarem soluções para o bem-comum. Não há um grande esforço coletivo para resolver este problema", critica Eric Frosio.
Contexto social adverso
O ambiente de crispação na sociedade francesa não é de hoje, mas o confinamento motivado pela pandemia de covid-19 exacerbou os comportamentos erráticos dos adeptos, ao ponto de Vincent Labrune, presidente da Liga, ter justificado os distúrbios pelo advento de "uma sociedade mais ansiosa, preocupada, fraturada, belicosa e um pouco louca".
"As pessoas foram para os estádios e para a campanha das presidenciais dos próximos anos, que também tem sido palco de confrontos, despejar as frustrações do confinamento. Já tínhamos problemas com os ultras radicais, sobretudo os do Lyon, ligados a movimentos de extrema-direita, mas o que vemos agora é o adepto comum a arranjar problemas", explica Eric Frosio. Durante o julgamento de Wilfried Serriere, adepto punido com seis meses de pena suspensa e banido de frequentar jogos do Lyon até 2026 por atirar uma garrafa de água contra Payet, ficou bem patente o problema comportamental, quando o arguido, com dificuldades para explicar o motivo da agressão, limitou-se a apontar a "euforia" como justificação.
Em entrevista ao "L"Équipe", Ronain Evain, diretor executivo da Associação Europeia de Adeptos, também destacou o efeito perverso do confinamento na preparação dos jogos, revelando que os clubes se desleixaram em elementares questões de segurança à conta dos vários duelos disputados sem público. "No Lens-Lille e no Lyon-Marselha, a divisão entre os adeptos era precária e não foram colocadas redes de proteção em torno dos setores mais problemáticos. Não via uma coisa dessas há 20 anos", criticou Evain.
O final do sonho de uma noite de verão
A contratação de Messi pelo PSG gerou uma natural expetativa de ver a Ligue 1 atirada para níveis de audiência e receitas nunca vistas, mas a violência tem representado um entrave a esse sonho.
"Em relação ao futebol, a França tinha tudo para viver a temporada mais interessante dos últimos 15 ou 20 anos. Tínhamos a chegada do Messi, a explosão de uma geração muito talentosa de jogadores e um lote de treinadores de qualidade. No entanto, a expetativa de um novo capítulo do futebol francês esbarrou na triste realidade da violência dos estádios, que está a manchar uma competição com vários clubes em dificuldades financeiras devido à pandemia da covid-19. A esperada retoma não aparece e isso deixa toda a gente preocupada", conta Eric Frosio. Na sequência dos incidentes do Lyon-Marselha, Roxana Maracineanu, ministra do Desporto, foi ainda mais longe e considerou que a sobrevivência do futebol francês está em risco.
"Não podemos permitir que um operador televisivo que paga uma fortuna pelos direitos da nossa liga passe horas a comentar agressões sem saber se o jogo recomeça ou não. Ajudámos os clubes durante a crise sanitária e permitimos o regresso dos adeptos ao estádios, mas agora estamos a estragar tudo e podemos pagar bem caro a nossa apatia", disse.