Ricardo Soares terminou aventura de 18 meses: "Se pudesse escolher, escolhia a China"
ENTREVISTA, PARTE I - Ricardo Soares abre o livro sobre a experiência de duas épocas na China, o final de ciclo insólito, obrigado a viajar, orientar treinos e jogos, numa cadeira de rodas, após grave lesão sofrida no perónio.
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Ricardo Soares concede a primeira entrevista após dar por encerrado o trabalho no Beijing Guoan, equipa que Jaime Pacheco já dirigira. Satisfação pela época, mesmo com final doloroso extracampo, mas acesso selado à Champions. Agora em Portugal, aguarda convites, dando preferência ao mesmo mercado de onde acabou de sair.
Passsou por um final de ciclo na China muito difícil. Quer partilhar?
—Fraturei o perónio, numa zona sensível com quebra extensa do osso direito. Aconteceu num jogo com um jogador meu a ser empurrado por um rival e a apanhar-me o pé. Optaram por não operar, pois tinha de ficar parado e de cama, como decorria a época e tinha treinos, aceitei assim. Prejudicou-me imenso, improvisei de cadeiras de rodas em alguns treinos e até jogos. O desgaste das longas viagens de avião, aeroportos enormes, muito demoradas. Foi constrangedor. Se fosse agora, garantidamente, tinha sido operado. Mas foi um processo difícil na luta bem conseguida pelo acesso à Champions. Não tinha grandes condições e não sou treinador de colocar um chapéu e dar indicações ao longe. Tiveram de ser os adjuntos, eu sentado com uma bota, à espera que osso calcificasse e unisse. Sinto-me melhor, mas ainda dói se for jogar padel ou fizer corrida mais agressiva.
Como resume dois anos na China?
—Foi uma experiência fantástica e poucas coisas más tenho a dizer. Fui muito bem tratado num clube de dimensão tremenda, da capital, aquele que tem mais adeptos e que enche o estádio. Se as coisas correm bem no clube e país, ficamos com imagem positiva, é algo que influencia o nosso pensamento. Atingimos os objetivos e fizemos história em alguns parâmetros. De coisas negativas acho que vou ficar pela comida, difícil muitas vezes, e pela distância, pois demorava 18 ou 19 horas para chegar a Portugal. De resto, apanhei um clube organizado, faço justiça ao Roger Schmidt, pois disseram-me que ele teve influência na profissionalização de algumas coisas dentro do contexto chinês. Nada faltava, um bom campeonato, com bons estrangeiros e chineses a crescerem. Há um longo caminho, o nosso talento é de outro calibre, mas são muito profissionais e educados.
Treinar na imensidão da China foi de andar com a cabeça à roda?
— Como costumo dizer a amigos mais chegados, já posso morrer. Quando comecei, tinha 0,0001 por cento de hipóteses de chegar onde cheguei. Mas chegados aqui queremos fazer sempre melhor, atingir os objetivos de quem nos contrata.
Encerrar passagem pelo Beijing foi resultado da recuperação em causa ou motivações desportivas?
— Adorei estar no clube e 18 meses não são 18 dias. Construiu-se uma afetividade e a relação funcionou muito bem. Este problema no perónio prejudicou imenso as minhas funções e tomei a decisão que estava em condições miseráveis para treinar, após esforço enorme para acabar a época. Deu-se a minha vontade de retribuir com a responsabilidade de tentar fazer tudo para colocar o clube na Champions. Não pude virar costas, mas foram meses de sacrifício. Com tempo avisei as pessoas que teria de fazer uma pausa para tratar da perna, pois sentia muitas dores e precisava de me reabilitar para ressurgir na plenitude. Tinha mais um ano de contrato em função do objetivo cumprido da Champions. Não existiu qualquer desgaste, só harmonia através dos resultados, da paixão dos adeptos, eram duas partes contentes, mas eu tinha de ficar bem.
E, agora, o que se segue?
— Temos uma profissão desgastante, mas muito apaixonante. Isto entranha-se no nosso corpo, é difícil estar muito tempo fora. Falta-me o treino, as emoções do jogo, as ligações do grupo. Estou novamente apto a aceitar um desafio. Recebi abordagens e propostas de vários países, até de Portugal. Mas só agora estou a pensar regressar ao ativo, porque estou bem. Vou esperar que apareça um projeto que vá de encontro às minhas expetativas, que passa por duas partes sintonizadas.
O futebol chinês deduzo que o seduz para um regresso e as razões maiores?
— Se pudesse escolher, escolhia a China. Gostei muito. Sofreu um retrocesso, mas, aos poucos, vê-se novamente investimento, ainda demorará a voltarem a atacar grandes estrelas, mas vão conseguir. Mas é um campeonato organizado, os estádios estão sempre cheios, tivemos 60 mil espectadores no último jogo. Depois há cinco ou seis equipas a lutar pelo título e é muito difícil ganhar um jogo fora, pela pressão dos adeptos rivais. Em casa temos 60 mil do nosso lado, fora são 40 ou 50 mil contra, isso gera barulho muito agressivo. Qualquer clube tem um estádio de 30 mil porque são cidades de 20 milhões. Depois existe um grande respeito pelos profissionais, criticam quando têm de criticar, mas não chegam a extremismos e quando perdem pronunciam-se com respeito. Também não há intromissões no nosso trabalho, gostam de perceber coisas e perguntar, só isso. É um país com uma cultura especial e onde as hierarquias mandam. Dão poder absoluto ao técnico mas, como em qualquer parte, o treinador depende de resultados.