Palestino em ascensão na América do Sul: "É mais do que uma equipa, é um povo"
Palestino tem lutado pelos lugares de topo no Chile, prolongando a sua ascensão no espaço sul-americano
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Jorge Uauy é o presidente devoto do Palestino, um homem com uma ligação fortíssima ao clube, que foi também atleta olímpico do Chile na modalidade de tiro, fechando Munique’1972 num 17.º lugar. Os últimos anos devolveram uma afirmação categórica dos “árabes” no plano nacional com presenças na Libertadores e classificações honrosas, repetindo na última época o 4.º lugar de 2023. Clube emblemático de uma migração de grande escala, fundado em 1920, o Palestino formou-se a partir de densa comunidade de palestinos que fugiram de uma atmosfera difícil, de guerras e conflitos permanentes, acabando por potenciar o maior refúgio fora da zona árabe para oriundos desta delicada zona do globo, a viver, como se sabe, nova fase de terrível mortandade e destruição. O futebol, a partir do impactante La Cisterna, foi motor de afetos para estes palestinianos, que se foram fazendo, numa comunhão de gerações, fãs do CD Palestino.
“O balanço dos últimos anos é extraordinário. Posso falar dos últimos oito em que o Palestino participou em sete competições internacionais, no caso de três Libertadores e quatro Copas Sul-Americanas. Foi o clube chileno com maior regularidade e presença em provas internacionais neste período. A Libertadores reforçou a nossa competitividade e mostrou ao mundo que o Palestino é muito mais do que uma equipa, é todo um povo. Fomos crescendo no plano desportivo, institucional e foi consolidado um projeto que nos enche de orgulho”, começa por explicar Uauy, celebrando anos de prosperidade, mesmo com um cenário mais doloroso a uma distância de 14 mil quilómetros. “A nossa grandeza radica na identidade e no que representa, falando de uma conexão profunda entre o futebol, uma comunidade e uma causa. Não somos meramente um clube desportivo, o nosso papel estende-se à representação de um povo, de uma luta e de uma resistência. O nosso lema é claro, ‘mais que uma equipa, todo um povo’. É isso que reflete a nossa essência, que nos converte num símbolo para a comunidade palestina e para todos os que conseguem ver no futebol uma forma de expressar solidariedade e união”, declara o dirigente de 80 anos, reconhecendo que os acontecimentos de Gaza, o sufoco de tanta gente pela defesa da sua casa e da vida, obrigam o Palestino a posicionar-se com mensagens inequívocas, levantando alto a bandeira do território massacrado.
“Cada vez que há essa representação em provas internacionais, vai connosco essa mensagem de solidariedade e esperança. Sabemos dos desafios terríveis que enfrentam Gaza e a Palestina, e a nossa visibilidade serve como plataforma para recordar ao mundo as injustiças e a resiliência do nosso povo. Sentimos uma profunda responsabilidade por saber que cada vitória nossa é um grito de apoio à nossa causa”, desvenda Jorge Uauy, medindo os feitos, balizando-os com o menor fulgor orçamental do que vasta concorrência, num país onde Colo Colo e Universidad Católica são históricos.
“Dentro das nossas condições, fazer três quartos lugares nas últimas três épocas é um logro destacado. Em pontos acumulados entre 2022 e 2024, somos a segunda melhor equipa do Chile. Este rendimento constante tem muito de planificação estratégica, um compromisso inquebrável do plantel e uma gestão eficiente. Temos superado expetativas e competimos com imensos clubes de maiores recursos”, evidencia o líder do clube chileno, sediado em Santiago, abrangendo apoios vastos.
“Ainda que as nossas raízes estejam profundamente ligadas à comunidade palestiniana, o Palestino transformou-se num clube que transcende fronteiras culturais. Os nossos adeptos incluem tanto descendentes palestinianos como chilenos de diversas procedências. Somos um clube com identidade, mas aberto a todos aqueles que valorizam a nossa história e valores. A nossa sede é um espaço de encontro que expõe a nossa história e conexão com a comunidade”, atesta Jorge Uauy.
“É essencial saber levantar a voz”
Discorridas nesta conversa também foram as várias ações do clube em prol de Gaza, desde que começaram os bombardeamentos israelitas. Singelas homenagens, de jogadores entrando em campo trajados com kufijas - um lenço típico da região - a tarjas fortíssimas nas bancadas como “Gaza Resiste, a Palestina existe”, passando por camisolas desenhadas com um mapa da Palestina, há uma convergência de apelos que cobrem o La Cisterna.
“Esses momentos foram profundamente emotivos, as nossas homenagens às vítimas de Gaza transmitiram solidariedade e dar visibilidade ao sofrimento que lá existia. Teve um impacto grande, foi a prova do poder do desporto como veículo de consciência social. O Palestino tem presente o futebol como uma ferramenta pela memória e apoio a causas justas”, opina, acrescentando uma visão mais pessoal. “É uma situação que me enche de tristeza e indignação. Ver gestos de apoio como a tarja solidária no Parque dos Príncipes e a homenagem em Amesterdão servem como recordação que a nossa causa não é solitária. Tem de haver essa consciência internacional, que fomente resistência e esperança”, assinala o dirigente, apelando a um substrato maior do futebol como alavanca de atenção na sociedade global. “Acho que há muito por fazer, podemos impulsionar mais campanhas que combinem desporto com iniciativas educativas de ajuda humanitária. É essencial levantar a nossa voz, não só nos estádios como em fóruns internacionais, mostrando que o desporto pode ser uma ponte para a paz e justiça”, vinca.
“Seguimos com um plano de fortalecimento para enriquecer as nossas equipas de formação, promovendo jovens talentos na expectativa que possam integrar-se na primeira equipa e representar o Palestino internacionalmente, como foi o caso de Iván Román, um rapaz de 17 anos que se estreou na Libertadores e na Sul-Americana, marcando golos. Queremos continuar com atividades culturais que celebrem a nossa história e conectem o futebol com a nossa identidade palestina. Finalmente, estamos a realizar obras no nosso estádio, começando com uma iluminação de última geração para abril de 2025. Queremos desfrutar do nosso querido Palestino nos horários mais cómodos para os nossos adeptos.”
A bênção de Figueroa
Mítico central do futebol sul-americano, figura ímpar como divindade do retângulo de jogo chileno, conquistador de honras e títulos no Peñarol e Internacional de Porto Alegre, glorificado pelos adeptos destas equipas, Elias Figueroa ainda teve ensejo de emprestar a sua classe no Palestino, chegando em 1977 para vencer um Campeonato e uma Taça. Jorge Uauy faz uma viagem ao estatuto transcendente da maior lenda do clube, muito responsável pela obtenção do título de 1977, o último arrecadado pelos “árabes” após 1954. “No nosso túnel, antes de sairmos para o campo, estão marcadas imagens memoráveis do jogo que definiu a consagração, com fotos e recortes da nossa proeza. Destaca-se a presença de Figueroa. É algo que faz parte da nossa tarefa, já que seguimos pendentes de outra festa igual há 46 anos. No entanto, há uns anos, em 2018, conseguimos outro troféu, a Taça do Chile sob comando de Ivo Basay e foi outro momento histórico, tratando-se da primeira no nosso estádio La Cisterna. Em ambos os casos, recordo a intensidade dos jogos, a paixão dos adeptos e a celebração que uniu a comunidade. Foi um título que reafirmou o nosso lugar na elite do futebol chileno e representou uma injeção de orgulho em todos adeptos, inclusive no estrangeiro.”
Lenda fintou questão financeira
Elias Figueroa, ídolo eterno do Internacional, autor do golo iluminado que valeu conquista do Brasileirão em 1975 numa final com o Cruzeiro, falou a O JOGO sobre a sua passagem pelo Palestino. “Foi muito bom representar a equipa, eu conhecia diversas famílias de origens palestinas, desde pequeno. O Chile destacou-se por receber esse fluxo migratório e no meu início profissional no La Calera, a família Chahuán tratou-me como um filho. Estive 11 anos fora do país, entre Uruguai e Brasil, recebendo ofertas para jogar na Europa, como no Real Madrid”, documenta, completando: “Acabou por pesar a família e a vontade de regressar ao Chile. O presidente do Palestino encontrou-se comigo em Porto Alegre, eu comentei que adoraria regressar ao meu país e adoraria fazê-lo pelo Palestino. Avisaram-me que não tinham dinheiro para essa contratação, porque eu era um jogador consagrado, eleito pelo terceiro ano consecutivo o melhor da América. O Internacional tinha de baixar a cláusula. Ou me vendiam ao Palestino ou me retirava”, recorda, orgulhoso pelo passo dado. “Jogar no Palestino foi uma grande opção e fizemos uma belíssima campanha. Fomos campeões com recorde de invencibilidade de 44 jogos, o que era recorde em toda a América do Sul”, defende Figueroa, rendido à experiência de 1977 a 1980. “Foi maravilhoso, era um grupo fenomenal no aspeto humano e de adeptos incrivelmente apaixonados e carinhosos”, descreve, reconhecendo já, na época, uma atenção cuidada ao contexto global. “A nossa relação com a Palestina sempre foi solidária com pessoas e famílias. É uma luta muito antiga e continuamos na expectativa de que se resolva.”