Flávio das Neves lembra colapso do Vitória em Villa Park. Uma conversa sobre a eliminatória disputada em 1983/84, numa altura em que conquistadores e villans se aproximam com investimento egípcio
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Numa altura que tanto se fala que o Vitória de Guimarães e o Aston Villa podem ficar ligados ao abrigo do dinheiro do egípcio Nassef Sawiris, situação que poderá ficar traçada já amanhã em assembleia-geral extraordinária dos conquistadores quanto a uma aprovação do investimento de 46 por cento do capital da SAD dos portugueses por parte do proprietário do clube de Birmingham - foi responsável pela subida à Premier League em 18/19 - importa lembrar uma eliminatória da Taça UEFA de 1983/84, apanhava o Vitória, então, a competir na Europa pela terceira vez, aquele que tinha sido o surpreendente campeão europeu de 1981/82.
Depois de triunfo em Guimarães por 1-0 que animou e muito as pretensões minhotas, valendo um golo de Gregório Freixo, a deslocação a Villa Park acarretava riscos e muita ansiedade. Nessa equipa era Silvino o guarda-redes e pelo onze encontravam-se outros ilustres como Laureta, Amândio Barreiras, Nivaldo e Flávio das Neves. Este último, que tinha vindo da Sanjoanense e cumpria a terceira época na cidade-berço, lembra bem os desafios com os ingleses, que tinham como estrela o avançado Peter White.
"Era a primeira eliminatória e sabíamos que tínhamos pela frente um adversário que havia sido pouco antes campeão europeu. Ao sabermos do sorteio vimos a coisa muito difícil, tinha calhado um colosso. Era indescritível a adrenalina desencadeada por esses jogos, era um bico de obra pelo estatuto que eles tinham! O Aston Villa tinha nesses anos uma dimensão enorme", relata Flávio das Neves, corroborando hoje a mensagem do austríaco Stessl, treinador dos portugueses naquele período, que definia o conjunto inglês como um dos mais fortes da Europa e em Inglaterra só inferior ao Liverpool, que amedrontava qualquer um por esse mundo fora.
"Na verdade conseguimos vencer a primeira mão com o estádio completamente cheio. Fizemos um grande jogo e fomos recompensados num penálti do Gregório Freixo. Não tenho dúvidas que merecemos ganhar e ficamos com a sensação de que esperávamos mais do Aston Villa. Que já não seria a mesma equipa campeã europeia dois anos antes. Isso reforçou as nossas expectativas, mantendo uma forte preocupação pelo poderio contrário e pelo facto de irmos jogar a Inglaterra. Queríamos passar mas acabamos humilhadas com um 5-0", argumenta o agora técnico, de 64 anos.
"Correu muito mal logo de início, ao primeiro minuto já perdíamos por 1-0. Ainda conseguimos dividir o jogo na primeira parte mas a começar a segunda veio o segundo e nós fomos acusando a responsabilidade, a pressão do público, todo o ambiente em redor do jogo, era um barulho ensurdecedor. No aquecimento tapei logo os ouvidos com algodão", recorda.
O antigo médio tentou ajudar Laureta a fechar os caminhos pelo corredor esquerdo no esquema armado pelo austríaco Hermann Stessl
"Pressão afetou-nos a cabeça"
"Fomos sofrendo golos, temos um jogador expulso e no último minuto eles chegam à mão cheia. Podíamos e devíamos ter feito mais mas as coisas realmente descambaram, os três primeiros golos foram de cabeça em livres laterais e cantos. Não fomos competentes, defensivamente foram muitas falhas, ainda tentamos reagir até ao 2-0. Os golos do Peter White foram muito facilitados. Lembro o MCMahon, Walters, o guarda-redes Spink mas era uma equipa que já não tinha a mesma força do título europeu", evidencia Flávio das Neves, tocando nos pecados coletivos que assolaram a equipa e redundaram num dia negro.
"Não há volta a dar, o peso de defrontar um campeão europeu assustava mas isso só o sentimos no início após o sorteio. A primeira mão libertou-nos disso mas não estávamos preparados para o ambiente em Inglaterra, a acústica do Villa Park, uma pressão constante. Isso afetou-nos a cabeça e roubou-nos faculdades. Fomo-nos expondo e os erros cometidos foram muitos. Foi a falta de maturidade que nos fez cair daquela maneira e foi um resultado que não retratou a diferença entre os clubes. O Silvino foi infeliz e essa partida teve repercussões no balneário nos jogos imediatos", relembra Flávio das Neves, percorrendo a sua galeria pejada de surpresas.
"Para mim era a primeira experiência europeia e logo contra um campeão europeu, a equipa do mítico Villa Park. Havia o Peter White que era um animal. Lembro um estádio tipicamente inglês, de termos viajado de Londres para Birmingham. A imagem dos carros a circularem pela esquerda, que era inédita para mim. Mas, sem dúvida, a verdadeira experiência chegou no aquecimento, estádio cheio, ambiente sonoro ensurdecedor e não dava para falar ou comunicar. Estávamos deslumbrados, era algo novo!", precisa o técnico natural de São João da Madeira, terminando com o curioso testemunho do modo de sentir o jogo pelo jogador britânico naquela época.
"No final estávamos frustrados e desiludidos no campo e os ingleses, por sua vez, ofereciam-nos cerveja. Nós, habituados a cumprir regras, estranhávamos. Eu estava espantado com aquilo. Queríamos trocar de camisolas e eles remeteram-nos para os balneários. É aí, quando me desloco para lá, que os encontro todos com máquinas de finos, grandes canecas nas mãos e de toalha pela cintura. Convidaram-nos a fazer o mesmo, aquilo era incrível e impensável em Portugal. Foi um choque para mim, fiquei siderado com essa mentalidade. Nós ficamos encolhidos sem saber bem o que fazer. Em Portugal nunca se beberia cerveja no final de um jogo", justifica o antigo médio do Vitória, que também pelo V. Setúbal e Académica.