#desportoemtempodeguerra >> Em 1914, o primeiro grande jornal desportivo francês viveu quatro anos sem desporto e a Volta a França perdeu três vencedores
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"Os prussianos são uns sacanas", bradava o editorial do jornal "L"Auto", uma espécie de primeira versão do atual "L"Équipe", em resposta à declaração de guerra à França, pela Alemanha, a 3 de agosto de 1914. Sob o título "Le Grand Match", o artigo era assinado pelo diretor Henri Desgrange, que também exortava os "amiguinhos" compatriotas a darem uma lição aos insuportáveis alemães. Desgrange fora o criador, treze anos antes, daquela que já então era a maior prova velocipédica do mundo, a Volta a França em bicicleta. Ele próprio antigo ciclista, detentor de vários recordes de velocidade e distância, partilhava da energia que, em finais do século XIX, lançara os franceses na obsessão pelo exercício. O historiador Michel Merckel justifica esse apetite súbito com os fracassos militares, cuja origem fora atribuída às debilidades físicas dos soldados. Em 1914, já não era assim.
Henri Degrange viu-se, de repente, numa situação não muito diferente da que vive um diretor de jornal desportivo por estes dias, embora agravada pela interrupção do Tour - fundamental para o "L"Auto". Todos os jovens em condição de combater foram mobilizados, em geral para as trincheiras. A I Grande Guerra envolveu 60 milhões de soldados, dos quais nove milhões não regressaram a casa. Entre eles, contavam-se 424 campeões nacionais franceses de várias modalidades, 78 deles ciclistas. Octave Lapize, vencedor da Volta em 1910, abatido aos comandos de um biplano. O luxemburguês François Faber, vencedor em 2009, caiu em combate. Chamavam-lhe o gigante de Colombes. Lucien Petit-Breton, que os antecedeu com um bis (1907 e 1908), morreu de acidente rodoviário durante uma retirada.
Em 1917, é mesmo Henri Degrange, de 52 anos, quem decide alistar-se e é das trincheiras que vai ajudando a encher as edições de "L"Auto", sob o pseudónimo Henri Degrenier (haverá algum humor da época no assunto, porque Degrange pode ser traduzido grosseiramente por Do Celeiro e Degrenier por Do Sótão). São menos crónicas de guerra do que atualizações das baixas entre as figuras do desporto ou relatos das atividades desportivas dos soldados, que já desde o início da guerra preenchiam boa parte das páginas amarelas do "L"Auto", às quais também iam chegando atualizações de eventos desportivos nos campos de prisioneiros, dos Aliados e também dos alemães. A "conduta corajosa" de Degrange viria a valer-lhe a Cruz de Guerra da República Francesa e a Cruz da Liga de Honra Militar.
Por decisão dele, o Tour regressou logo em 1919, sob grandes condicionamentos. Sem condições logísticas para assumirem a prova sozinhos, nos escombros do pós-guerra, os fabricantes foram obrigados a juntar-se. Faltavam pneumáticos e acessórios de todo o género para as bicicletas, ameaçadas ainda pela deterioração das estradas. Mesmo as que tinham escapado às bombas, estavam arruinadas por quatro anos sem manutenção, o que não ajudou os ciclistas. Partiram 60 e chegaram apenas onze ao Parque dos Príncipes, a 27 de julho. Entre eles, a primeira camisola amarela da história, cuja cor, escolhida por Degrange, pretendia dar visibilidade ao líder no pelotão - e que era também a do papel usado para impressão do "L"Auto" e, por coincidência, a do principal patrocinador do Tour. O francês Eugène Christophe foi o primeiro a vesti-la, na 11ª etapa, mas quem ficou com ela foi o belga Firmin Lambot.