Modric, Davies e muitos outros mostram como o futebol pode ajudar os refugiados
Alphonso Davies devolveu o tema dos refugiados à ribalta ao tornar-se o mais jovem a marcar na Bundesliga este século. Mas as barreiras para chegar ao futebol são demasiadas. Osama Rashid aponta-as.
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Despojados das raízes, dos lares e da família, encurralados por leis e estigmatizados pelas comunidades onde se tentam proteger de guerras ou perseguições políticas, os cerca de 26 milhões de refugiados mundiais não têm todos as bonitas histórias de Alphonso Davies (o canadiano que nasceu num campo de refugiados no Gana, filho de refugiados liberianos), que no domingo passado se tornou no mais jovem a marcar, pelo Bayern, na Bundesliga no século XXI. Ou de Modric, atual Bola de Ouro.
"A FIFA tem de desenvolver o passaporte de jogador no mundo para permitir aos refugiados jogarem futebol", diz Jonathan Fadugba, da Fare, uma associação que coopera com as autoridades do futebol (FIFA e UEFA e federações, clubes, associações).
Criar passaporte de jogador pode ampliar poder do futebol para mitigar sofrimento de perto de 70 milhões de deslocados à força
"Há muitos obstáculos entre os refugiados e o futebol profissional: as regras da FIFA (por exemplo, para evitar tráfico de menores) e as leis em muitos países (para protegerem menores de 18 anos)", diz o porta-voz de uma das mais ativas e experientes organizações não governamentais (ONG) que combatem a discriminação. A Fare celebra em 2019 20 anos de atividade.
"A Alemanha é um bom exemplo, ao contrário dos outros países. Criou uma lei compreensiva que permite aos refugiados jogarem futebol profissional, providenciou financiamento, através do estado e da federação, e criou um passaporte de jogador que possibilita aos refugiados competir nas competições locais", acrescenta Jonathan Fadugba, sublinhando que "Portugal não tem esse tipo de mecanismos".
Por cá, trabalha-se muito e bem no acolhimento e integração dos refugiados, apesar do estigma que enfrentam por parte das populações locais à escala mundial. O estatal Alto Comissariado para as Migrações e as ONG Plataforma de Apoio aos Refugiados e Conselho Português para os Refugiados desenvolvem ações de abrangência social, cultural e desportiva para combater a intolerância. Algumas das ações têm programas financiados por instituições, dentro e fora da esfera do Estado, e no futebol a Federação, a Liga e o Sindicato dos Jogadores são muito ativos.
Porta-voz do movimento, Osama Rashid, jogador do Santa Clara (a família refugiou-se na Holanda devido à guerra no Iraque), diz que o "futebol já faz muito para chamar a atenção destes assuntos". "As pessoas acreditam mais nos futebolistas do que nos políticos. Mas a guerra na Síria gerou muito mais refugiados e torna tudo mais difícil. Os países criam mais regras para impedir que as pessoas entrem nos países e os nativos têm medo de que as pessoas fujam dos países por causa da economia. Dizem: "Têm dinheiro e vêm para aqui." Mas o que interessa se têm dinheiro? Fogem porque são ameaçadas pela política ou pela guerra. Não estão seguras. Tem a ver com a segurança", diz a O JOGO. E conclui: "Não é um problema falar-se da migração, pelo contrário. Mas não quero que afete a minha carreira, que se esqueçam de que sou um bom jogador que quer jogar nos grandes ou nas cinco melhores ligas."
Fadugba explica: "As estrelas que são refugiados tiveram de deixar as famílias para trás, familiares mortos, tiveram de trabalhar dez vezes mais. Merecem celebrar e ser reconhecidas, porque ainda por cima enfrentam o estigma e a desconfiança da Imprensa."
O onze de refugiados do Mundial'2018*
Guarda-redes: Steven Mandanda (Marselha/França)
Mandanda e a família foram forçados a deixar Kinshasa (no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo), durante o reinado de Mobutu Sese Seko, e emigraram para Liège (Bélgica)
Defesa: Victor Moses (Chelsea/Nigéria)
Moses cresceu em Kaduna, Nigéria. O pai e a mãe foram atacados e mortos em casa durante a escalada de violência em 2002. Soube do ataque enquanto estava a jogar à bola na rua, antes de ser enviado para uma família de acolhimento em Londres.
Defesa: Dejan Lovren (Liverpool/Croácia)
Lovren e a família tiveram de fugir de casa, em Kraljeva Sutjeska, antiga Jugoslávia, quando o conflito rebentou e matou dezenas de milhares de pessoas.
Defesa: Vedran Corluka (Lokomotiv Moscovo/Croácia)
Nascido na ex-Jugoslávia, Corluka mudou-se para Zagreb em 1992 devido à guerra na Bósnia.
Defesa: Milos Degenek (Yokohama Marinos/Austrália)
Foi para a Austrália com a família em 2000. "Vivendo na Croácia sendo sérvios, fomos forçados a fugir para Belgrado, onde vivemos como refugiados. Era muito jovem, mas, ainda assim, vi coisas que nenhuma pessoa deveria ver."
Médio: Luka Modric (Real Madrid/Croácia)
Em criança, Modric foi obrigado a fugir com a família da cidade natal de Zadar, na antiga Jugoslávia. Viveu em alojamentos durante a guerra da independência da Croácia, no início dos anos 90.
Médio: Granit Xhaka (Arsenal/Suíça)
Xhaka nasceu em Basileia, filho de pais albaneses. A família mudou-se de Podujeve, no Kosovo, para a Suíça, pouco antes de ele e o irmão nascerem.
Médio: Ivan Rakitic (Barcelona/Croácia)
Foi forçado a deixar a Croácia com a família antes de começar a guerra na antiga Jugoslávia. Foram para Mohlin, Suíça, onde Ivan nasceu e foi criado.
Avançado: Adnan Januzaj (Real Sociedad/Bélgica)
Filho de albaneses kosovares, Januzaj nasceu em Bruxelas a 5 de fevereiro de 1995.
Avançado: Josip Drmic (Borussia Moenchengladbach/Suíça)
Drmic é filho de croatas e nasceu em Lachen, no cantão suíço de Schwyz, fugindo à guerra.
Avançado: Pione Sisto (Celta de Vigo/Dinamarca)
Nascido no Uganda de pais do Sudão do Sul fugidos da guerra civil, Sisto mudou-se para a Dinamarca com dois meses de vida.
*O 11 de refugiados é uma das iniciativas anual da ONG Fare incluídas no Dia Mundial dos Refugiados (20 junho) para promover a tolerância e lutar contra a estigmatização enfrentada pelos migrantes
Mais refugiados em Portugal
O ano de 2018 aproximou-se, em número de refugiados que pediram asilo às autoridades, do trágico ano de 1993, zénite da tragédia humana provocada pelas guerras na antiga Jugoslávia. No ano passado registaram-se 1270 pedidos espontâneos, contra os 1659 de há 26 anos. O alarme começou a disparar com a crise de 2015, mas as consequências só foram sentidas em 2017 e 2018.