"Época devia ser cancelada e não faz sentido declarar campeão em Portugal"
ENTREVISTA (Parte 1) - Em entrevista a O JOGO, Jorge Simão fala da experiência na Arábia Saudita e, sem falsos constrangimentos, garante que não há condições para finalizar os campeonatos
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Jorge Simão está em Portugal a cumprir a quarentena. Com a liga árabe interrompida, o treinador do Al-Fayha aguarda o tempo necessário, isolado, para se juntar aos familiares, mulher e filho, no Porto.
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A viver na pacata cidade de Al Majmaah diz estar a gostar da experiência e fala de um sentimento recíproco. "Quando passo na rua, as pessoas apitam e dizem: "Simão, I love you". Desportivamente, o entendimento é total, ao ponto de estarem neste momento a discutir a renovação do contrato. Como no resto do Mundo, a pandemia do novo coronavírus obriga a alterações profundas no plano financeiro e o técnico português aceitou sem hesitar uma redução de 50 por cento no seu ordenado.
Como tem sido a experiência na Arábia Saudita?
-Tem sido uma experiência incrível. Quando temos uma oportunidade destas, estamos muito longe de imaginar o que vamos encontrar. As expectativas estavam longe do que na verdade encontramos no nosso dia a dia. Eu falei com algumas pessoas antes de viajar e a maior parte delas dizia que a adaptação não seria fácil, muitas até confessaram que não tinham gostado da experiência, mas eu estou satisfeito.
Quando se fala em emigrar para a Arábia Saudita fala-se em dinheiro. Foi isso que pesou na sua decisão?
-Em momento algum da minha vida o dinheiro me fez movimentar. Agora, estamos a falar de um mercado onde se praticam valores muito diferentes do que se vê em Portugal, sobretudo porque não se pagam impostos. Em Portugal, a carga é muito alta, acima dos 50 por cento.
O antigo treinador de Belenenses, P. Ferreira, Chaves, Braga e Boavista, lembra que os clubes dependem 80 a 90 por cento das receitas televisivas e, por isso, estão a ser pressionados a voltar
As opiniões dividem-se em relação ao futuro das competições. Há condições para continuar a época?
-Se se suspendem as competições por tempo indeterminado, deviam cancelar a época. Seria como se não tivesse efeito. Começaríamos assim a próxima. Não faz sentido retomar os trabalhos dois ou três meses depois. É jogar para o negócio, para haver dinheiro. Desvirtua qualquer prova. Assim, estraga-se esta época e hipoteca-se a próxima. Compreendo toda a pressão e interesse fechar as competições. Acontece por causa das operadoras televisivas, que são responsáveis pelas receitas do futebol. A maior parte dos clubes depende a 80/90 por cento do dinheiro que vem das televisões. E se não houver dinheiro das televisões, muitas vezes até já adiantado, a dificuldade torna-se crescente. O problema maior está no motor do futebol, que é a Inglaterra. Para cúmulo, há outra adversidade: as operadoras não pagam aos clubes e pedem indemnizações porque os contratos não são cumpridos. Mas volto a dizer: as razões que levaram a federação a cancelar competições e a liga holandesa, por exemplo, a fazer o mesmo ao campeonato, para outros já não são válidas?
Apoiando nessa teoria, como é que se fazia em relação à atribuição do título, à presença nas competições europeias, às promoções e despromoções?
-Por mais que custasse a alguns clubes, ficaria a valer a época anterior. Para alguns, sei que seria dramaticamente injusto. Por exemplo, não declarar o Liverpool campeão era uma hecatombe, uma injustiça difícil de engolir. Teria de ser visto caso a caso. Mas faz sentido declarar um campeão em Portugal? Não sentido nenhum. Chame-se FC Porto, Benfica ou Sporting. Na segunda liga, que clubes sobem? Quem desce? Assim, cortava-se a direito, uma solução radical, mesmo sabendo que possa ser injusto para alguns.
O Al-Fayha também avançou para cortes salariais no plantel?
-Assumimos um acordo onde nos cortam 50 por cento do vencimento até ao retomar do campeonato. Inclui jogadores e treinadores. Estou solidário com a decisão porque compreendo o momento que vivemos. Se os clubes deixam de ter receitas - na Arábia as televisivas valem zero -, é porque se trata de um momento delicado e todos temos de ser solidários. Quem sou eu para estar em casa e reclamar pelo meu vencimento? Não tenho a coragem ou ousadia para o fazer. Mal me foi proposta esta situação, aceitei sem hesitar. Outros clubes árabes fizeram o mesmo.
"TREINAR COM DOIS JOGADORES NÃO É FUTEBOL"
O técnico não esconde o desconforto pela estratégia adotada pelos clubes no regresso aos treinos, tendo em vista o reatar da competição.
Lentamente as equipas voltam aos treinos, ainda que com condicionalismos. O que pode fazer um treinador nestas circunstâncias?
-Acho que é bom para ativar os jogadores. Dá-lhes outro estímulo porque já não estão em casa. Mas esqueçam. Isto não é futebol! Fazer treinos com dois jogadores em cada meio-campo, não é futebol. Ninguém forma uma equipa assim. Esqueçam! Dois jogadores de cada lado do campo serve apenas para ativar e ponto. São tentativas de pressionar, abafar, justificar... não sei. Quem tem de dar luz verde para o início dos treinos não são as ligas, os clubes ou as federações ou UEFA ou FIFA. São as organizações mundiais de saúde, são as direções gerais da saúde. São elas que têm de dizer: "podem avançar, mas com as seguintes restrições ou condicionantes".
Já lhe foi comunicada pela direção do Al-Fayha a data de regresso aos treinos?
-Não há data definida. O que se diz é que será em agosto, dependendo do controlo da pandemia.
"Porta fechada? O jogo é feito para os adeptos, nós jogamos para os nossos adeptos"
Uma das hipóteses mais fortes é o regresso da competição à porta fechada. O que lhe parece esta ideia?
-O jogo é feito para os adeptos, nós jogamos para os nossos adeptos. Por exemplo, acho que os motivos que levaram a federação portuguesa a cancelar os campeonatos sob a sua égide, deveriam levar a Liga a fazer o mesmo nas suas competições. Mas, por outro lado, compreendo que se o futuro do futebol depende do retorno da competição o mais rapidamente possível, eu, como profissional, tenho de me sujeitar a tudo e jogar à porta fechada. Ouço muitos especialistas abordarem estes assuntos, mas sem conseguirem dar resposta às questões práticas. Por exemplo, já se falou em estarem todos confinados num espaço. Imagino as 18 equipas da Liga todas juntas numa aldeia a disputarem as últimas dez jornadas num mês e meio... E a malta que corta a relva e limpa os balneários, também fica durante um mês e meio, num hotel de cinco estrelas, sem ver a família? E fazem testes todos os dias testes como os jogadores, técnicos e restante staff? Toda a logística que envolve a organização de um evento destes vai ficar também de quarentena durante mês e meio? Nada será como dantes. Serão dados passos intermédios mas é preciso pensar muito bem no que fazer.