De estagiário dos sub-13 do Benfica sem receber um euro até à alegria no Equador
ENTREVISTA >> Figura carismática por onde tem passado, Ricardo Pereira é um treinador de guarda-redes que não deixa ninguém indiferente, marcando uma empatia fácil com quem o rodeia.
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Aos 49 anos, Ricardo Pereira exerce feliz, descaradamente apaixonado, a sua tarefa no Equador, oferecendo a sua competência no crescimento do Independiente del Valle, por quem já conquistou a Taça Sul-Americana, diante do São Paulo e a Recopa frente ao Flamengo. Acabou de ser fortemente pretendido pelo Mengão mas não se deixou inebriar pela potência popular do emblema carioca.
- Pode fazer um resumo da carreira pós Benfica que termine no entendimento da chegada ao Equador?
Antes de mais preciso expressar a minha gratidão ao Benfica e a todos aqueles com quem trabalhei, nomeadamente treinadores e restante estrutura. Cheguei ao Benfica com 37/38 anos, e quase nula experiência. Comecei como estagiário nos sub-13 sem receber um euro e amei cada segundo que pude trabalhar no futebol de formação. Saí cinco anos depois como Treinador de guarda-redes da equipa B e quando começava a sonhar devagarinho com a Equipa A. Por isso devo muito a todos os que tanto me ajudaram a crescer e evoluir, nomeadamente todos os guarda-redes que tive. O convite para sair apareceu através de Ricardo Sá Pinto (por sugestão de um adjunto seu, o Guilherme Gomes). Foram três anos intensos e com gratas memórias divididas entre a Arábia Saudita, a Bélgica e a Polónia. Passados estes três anos vividos pela primeira vez no estrangeiro e com tanta intensidade, sentia muitas saudades da família e pensei parar por algum tempo para dar algum apoio em casa. Foi uma estadia, que ainda que curta, me permitiu voltar a viver o dia a dia das minhas filhas e refletir sobre o meu processo e metodologia de treino.
- E surge o Nottingham Forest...
O convite do Nottingham Forest foi não só surpreendente como muito aliciante para alguém que queria viver "o sonho do futebol inglês..." fui coordenador do departamento de guarda-redes e treinador de guarda-redes da equipa B..., mas aí percebi que apesar do amor pela formação, nas minhas veias já corria um vício chamado competição, adrenalina de preparar jogos e sentir pressão para ganhar. E através de um treinador de guarda-redes finlandês, que conhecia muito bem o meu trabalho, aparece o convite do Independiente del Valle. Decidi aceitar por três motivos muito objetivos: o projeto do clube, a duração do contrato e as excelentes condições financeiras que me ofereceram! Voltei depois um ano à Polónia (primeira equipa do Legia Varsóvia) por convite expresso do Presidente e com a promessa de um projeto único e inovador. Mas não estava feliz e não resisti ao apelo do Treinador Martin Anselmi e dos dirigentes que me telefonaram e disseram basicamente para voltar ao Independiente del Valle porque esta era a minha casa. E aqui estou de novo... já a caminho do meu terceiro ano desta casa, no total.
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O que foi mais determinante na carreira do Ricardo: a passagem pelo Benfica ou estes anos de Independiente del Valle?
O mais determinante são sempre as pessoas e o prazer que tenho em me levantar pela manhã e ir trabalhar com elas porque me podem ensinar algo novo! Encontrei pessoas destas nos vários clubes que representei, nomeadamente no Benfica e no Independiente! Por isso procuro e questiono todos os que me estimulam e possam ajudar a evoluir e os que me fazem sentir desconforto por (ainda) não dominar alguma dimensão do jogo ou do treino. Porque foram estes que me levaram a criar os meus exercícios para uma forma específica de jogar, a estar no treino de forma apaixonada e detalhista, a melhorar a capacidade de feedback, análise e avaliação.... É este o tipo de pessoas com quem quero trabalhar! O Benfica deu-me alicerces fortes e estáveis, porque tinha um excelente departamento liderado pelo Hugo Oliveira. O Independiente del Valle permitiu-me construir as paredes e colocar o telhado nessa mesma casa. Permitiu-me "afinar" uma metodologia de trabalho assente em "treinar para jogar", sempre em função das necessidades do guarda-redes, preparando-o diariamente para responder ao tipo de jogar que o treinador quer e às necessidades da equipa quando estamos em posse, em momentos de transições, em pressão ou em bloco defensivo. Na verdade, preocupo-me com o desfrutar do dia de jogo, porque o futebol não deve ser drama ou sofrimento, mas sim entrega, prazer, estratégia, posicionamentos, decisões, e depois deixar os protagonistas interpretar, executar e desfrutar.
- Que importância do Renato Paiva na sua carreira e que jogadores foram mais marcantes no Benfica?
Partilhámos bons momentos durante os três anos em que fui seu treinador de guarda-redes nos sub-17 do Benfica, onde tivemos a felicidade de ter ao nosso dispor gerações muito boas e de ganharmos dois campeonatos. Assistir à evolução e crescimento de jogadores como Ruben Dias, Ferro, Pedro Rodrigues, Renato Sanches, Gonçalo Guedes, Guga, Joāo Carvalho, Iuri Ribeiro, André Ferreira, João Virgínia, entre tantos, tantos outros foi um privilégio. Voltámos a trabalhar juntos, em fases diferentes da carreira de cada um, e pude confirmar a qualidade que lhe reconhecia. O Renato foi importante para mim pelos conhecimentos de jogo que me transmitiu para poder desempenhar melhor a minha função, como foram o Hélder Cristóvão e o Ricardo Sá Pinto, a quem estarei eternamente grato e por quem tenho muito carinho e admiração. Estes dois receberam-me "verdinho" na minha chegada ao futebol profissional e foram determinantes para o meu crescimento e evolução.
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- O Vítor Pereira acabou demitido do Flamengo, passou um mau bocado com o Del Valle perdendo a Recopa Sul-americana. Que imagem desta saída e que leitura do fenómeno de treinadores portugueses no Brasil?
Nós também passámos um mau bocado com o Flamengo do Vítor Pereira. Tendemos a olhar demasiado para o resultado e a perder alguma objetividade nas análises. O futebol não devia ser assim! Eu vi um Flamengo com muita qualidade individual, vi um Flamengo a adquirir novos conceitos de posse e pressão para os quais é necessário ter qualidade quando temos a bola, mas também "fome" para a recuperar quando não a temos. Se não houver esta fome, a qualidade não chega! Igualmente vi um excelente duelo tático entre as estratégias delineadas pelos treinadores. Senti sobretudo que ambos tiveram a coragem de estimular os seus jogadores a serem protagonistas com bola e a não jogar apenas no erro do adversário. O Independiente conseguiu fazer isso em Quito e o Flamengo no Maracanã. O Flamengo é um clube gigante no qual a pressão para ganhar é tremenda. O que acaba por ser normal em qualquer país, mas ainda mais no Brasil onde há alguma impaciência em obter resultados imediatos. Os treinadores portugueses têm mostrado qualidade e muita seriedade no trabalho. Está à vista o incrível trabalho que o Abel Ferreira tem feito e seguramente não é por acaso que chegaram mais técnicos ao Brasileirão.