<strong>ENTREVISTA (PARTE 1) - </strong>Vítor Baía completa na terça-feira 50 anos, fez uma viagem ao passado com O JOGO, contando e revivendo histórias de uma vida numa entrevista exclusiva. A não perder.
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Uns dias antes de completar esta bonita idade, O JOGO convidou Baía a fazer uma viagem no tempo e a recordar os momentos mais marcantes da sua vida. Está com 50, mas acha que tem menos, e o tempo também foi generoso com ele. Hoje, é uma das caras do Canal 11, e tem jeito para a coisa. Bem, para a baliza tinha muito mais, só porque foi excecional. Ele conta como tudo começou...
Pois é! Aquele rapazinho que se estreou na baliza do FC Porto com 18 anos completa 50 anos amanhã! Vítor Manuel Martins Baía e uma longa carreira de memórias. Façamos a viagem
Que memórias guarda da infância?
- A alegria contagiante do caminho para os torneios de futsal em recintos de cimento, longe de imaginar o percurso que ia ter. Era uma alegria poder fazer aquilo que mais gostava. Tive uma infância tranquila. O meu pai era guarda-fiscal, a minha mãe doméstica, num ambiente de paz e amor, e ambos ajudaram-me a ter a consistência necessária para abraçar a carreira.
Nasceu em S. Pedro da Afurada, mas quase só nasceu...
- É verdade. Quase só nasci lá, porque aos quatro meses mudei-me para Leça da Palmeira. Mas vou lá sempre que posso, identifico-me muito com aquela gente, com a raça, o espírito. Leça da Palmeira é a minha terra de adoção, como cantam os Expensive Soul, e muito bem, é a terra mais bonita de Portugal.
"O Costa Soares olhou para o Domingos e disse-lhe. "Então, rapaz, tu não comes?"
Desde criança que quis ser guarda-redes?
- Tenho consciência de que nasci para ser guarda-redes. Tive as pessoas certas para potenciar as minhas qualidades. Nasci com qualidades naturais... também jogava bem à frente. O meu grande amigo de infância, e de hoje, o Domingos Paciência, achava que era melhor do que eu na baliza. E nos armazéns do quartel, hoje complexo da Bataria de Leça da Palmeira, andávamos sempre a ver quem era o melhor. Passávamos horas naquilo. Ele dizia que era melhor guarda-redes do que eu; eu dizia que era melhor avançado do que ele. Na baliza, dava-lhe 10-0... e chegou o momento em que o melhor, para mim, seria fixar-me na baliza.
Não foi fácil convencer o seu pai a deixá-lo jogar futebol...
O meu pai foi sempre muito rígido em relação à escola. Tanto eu como a minha irmã fomos excelentes alunos. O futebol era para desfrutar. Para conseguir entrar no futebol tive de ter boas notas. Na altura, o meu pai teve uma reunião com o meu treinador, que também era o presidente da Académica de Leça, Fernando Santos, e deixou bem vincado que podia jogar, mas primeiro estava a escola. Só com boas notas é que me deixava jogar. Que remédio, tive de ser bom aluno... Consegui até começar a ser chamado às seleções.
Como é que chegou ao FC Porto?
- Estive na Académica dos 8 aos 13 anos. Num torneio no Estádio do Mar, fomos à final e acabei por não ter muito trabalho. Fomos a penáltis, eu defendi-os todos e convidaram-me para fazer testes no FC Porto. Foi assustador chegar e olhar para o Estádio das Antas. Senti-me mesmo pequenino. Comigo foram o Fernando Santos e o Domingos, que também ia fazer testes.
Como é que correu?
- A primeira pessoa que encontrámos foi o Costa Soares, um dos responsáveis pela formação, que olhou primeiro para o Domingos, que era um fivelinhas, e perguntou-lhe. "Então, rapaz, tu não comes?" e o Domingos disse que sim, mas o Costa Soares disse-lhe que ele ia passar a comer noutro lado porque estava muito magro. A mim, olhou-me e perguntou-me se o meu pai era alto. Eu disse que sim. Voltou a olhar para mim e insistiu, "mas é mais alto do que eu?" [ele era baixo]. Um bom bocado, respondi-lhe. Eu era baixo, mesmo para a idade, e percebi depois que ele estava a olhar para o futuro. Estava numa missão de scouting...
"Dou graças a Deus por o meu pai ter ido ver um jogo meu ao Leixões em que a minha mãe foi insultada. Nunca mais quis ir"
Engatou logo a jogar?
- Cresci no FC Porto como guarda-redes liberto da pressão dos pais. Dou graças a Deus por o meu pai ter ido ver um jogo meu com o Leixões em que a minha mãe foi muito insultada. Ele nunca mais foi ver um jogo meu, de modo que cresci sem ter o meu pai a pressionar nas bancadas, ou a pressionar treinadores, como se vê ainda hoje, e na altura já era uma triste realidade. Estive três anos sem jogar, em que fui segundo ou terceiro guarda-redes, mas nunca desisti, fui sempre com um grande prazer treinar, e treinava sempre como se fosse o dia mais importante da minha vida. Tive sempre a sensação boa de que o meu dia havia de chegar. Não foi muito difícil depois. Eu nasci para ser guarda-redes.
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COMO SE FALHA UM MUNDIAL
Outro 11 de setembro para a história, no caso, do ano de 1988. Esta história já foi contada várias vezes, mas Baía entende por bem relembrá-la. "A minha estreia, com 18 anos, é inesquecível, mas não vou dizer que me estreei porque era o melhor. Acontece que ninguém conseguiu encontrar o Zé Beto, que estava a contas com um processo disciplinar, não havia telemóveis. O Joseph (Mlynarczyk) lesionou-se e fui eu para a baliza porque não havia mais ninguém".
"Falhar o Mundial de Riade deixou-me muito triste, mas não tive hipóteses de dizer que não ao FC Porto"
Quinito era o líder, mas quem mais marcou o guarda-redes foi outro treinador... "Passados três meses dessa estreia, o Artur Jorge regressou ao FC Porto. Passado um mês, eu estava a jogar a titular." Vítor Baia reconhece os méritos do treinador campeão europeu... "Marcou-me muito e marcou toda a minha carreira. Foi preciso muita coragem para apostar em mim, tinha 19 anos então e à minha frente tinha um guarda-redes de grande qualidade, infelizmente já desaparecido, o Zé Beto." Esta promoção tão inesperada do guardião teve um senão. Falhou a ida ao campeonato do mundo de Riade, sub-20, que Portugal viria a conquistar com total brilhantismo. "Não foi por minha vontade que falhei, simplesmente não tive hipóteses de escolha. O clube, que era a minha entidade patronal, entendeu que precisava de mim, que ia ser o titular absoluto, e eu não pude fazer nada."
O guarda-redes confessa que a ausência no campeonato do mundo foi difícil de superar... "Muito difícil mesmo! Estavam lá todos os meus amigos, todo os meus companheiros de seleção, e tínhamos fortes esperanças de conquistar esse campeonato. Felizmente conseguimos, mas eu não estive lá. E esse facto provocou-me uma grande tristeza só superada por perceber que estava a nascer uma grande carreira no FC Porto", como viria a confirmar-se.