PLANETA DO FUTEBOL - Quando Sérgio Conceição afirmou, com realismo tático positivo, que preferia um resultado de 1-0 a um de 4-3 abriu a caixa de Pandora de discussão dos estilos de jogo e logo se viu nessa declaração um confronto com a então elogiada ideia holandesa recentemente (re)introduzida por Keizer no nosso futebol, com romantismo tático positivo, para quem o fundamental é marcar mais golos do que o adversário.
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É, em tese, um debate interessante. É, na prática, um debate ideologicamente desigual. Para os dois, acredito, o resultado (ganhar) será sempre o mais importante, mas quem está mais próximo de ganhar: quem procura garantir que com a sua forma de jogar não vai sofrer golos (ou reduz essa possibilidade) ou quem, ao invés, procura garantir que vão marcar (sem tantas fechaduras táticas pensadas atrás)? Pode ser cruel e até antirromântico, mas a história e o presente dão, claramente, razão ao primeiro.
E há jogos em que 1-0 é uma goleada. Nesse sentido, o atual FC Porto de Sérgio Conceição é, claramente, uma equipa mais consistente.
Mas podemos definir o conceito de "futebol positivo" só a partir de uma equipa que quer ter a bola - a noção de "equipa de posse" - e procurar a baliza adversária em contraste com uma ideia que se pode chamar, pela lógica "a contrario sensu", de "futebol negativo", quando parte do princípio de não ter a bola e, recuando mais ou menos as linhas, proteger mais, prioritariamente, a sua baliza? Percebo a dicotomia (e até posso ser atraído por ela), mas é uma forma muito redutora (mas habitual) de ver o futebol, tática e ideologicamente falando nos tempos presentes.
Não existe, por natureza, "futebol ofensivo" e "futebol defensivo", nem, pegando nessa ideia para, abusivamente, lhes colar rótulos de "futebol positivo" e "futebol negativo". Existe, no ideal tático, futebol harmonioso, futebol consistente. É este que harmoniza os diferentes momentos de jogo e equilibra a equipa dentro da noção básica de que em campo, num jogo, o futebol tem duas balizas. Não sofrer é tão importante como marcar (e vice-versa). E há jogos em que 1-0 é uma goleada. Nesse sentido, o atual FC Porto de Sérgio Conceição é, claramente, uma equipa mais consistente (em termos táticos com abordagens estrategicamente - e de modelo - positivas a pensar o jogo para o ganhar) do que o ainda em formação Sporting de Keizer, um projeto que não teve princípio de época e começou a meio dela sem criar bases de sustentação tática (e conhecimento individual total dos jogadores).
Há superioridade em falar no 4-3 ou no 5-4?
O chamado "futebol positivo" não é, no entanto, uma mera lenda romântica de jogo. Tem bases conceituais de respeito pela bola e de olhar a baliza adversária como a mais atraente no jogo. Não pode é, nunca, ser um valor absoluto. Porque o jogo tem uma caprichosa relatividade tática que pode subverter aquela ordem de valores na fria realidade. A alternativa não é, porém, jogar um "futebol negativo". A solução está na inteligência da consistência de jogo (ideia-base do modelo e estratégia tática).
Quando um treinador diz preferir ganhar por 1-0 a ganhar por 4-3 quase parece que se está a defender de preferir o pragmatismo que memoriza riscos contra a superioridade moral daqueles que querem é o jogo com golos, aberto e virado para a frente, mesmo que isso comprometa a solidez defensiva. Não faz sentido esta divisão de mundos. As diferentes escolas criam, sem dúvida, essas imagens de marca, mas o conceito de bom futebol não muda tanto quando se atravessam fronteiras.
A solução está na inteligência da consistência de jogo (ideia-base do modelo e estratégia tática).
Não há superioridade moral em colocar a equipa taticamente na berma do precipício, promovendo quase o "partir do jogo" e ficar tão perto de marcar como de sofrer. Para o adepto imparcial tudo isto é, não duvido, empolgante, mas para o dessa equipa (e seus responsáveis) essa bela ideia do 4-3 só é assim tão emocionante até ao dia em que ele pode, pelo caos tático-defensivo em que o jogo cai, transformar-se num 3-4 a favor do... adversário. Nessa altura já olham de forma diferente para o frio cinzento do 1-0 que desprezaram (e que, quase sempre, tem dentro dele um rigor e inteligência tática defesa-ataque-defesa incomparavelmente superior).
Conceição vs Keizer: só há uma bola!
É possível olhar para este confronto entre Marcel Keizer e Sérgio Conceição como um choque entre a escola holandesa dita ofensiva (o tal futebol aberto positivo) e a escola portuguesa (de inspiração venenosa latina)?
Em termos absolutos até pode ser, mas é claramente uma forma redutora de olhar para esta dicotomia ideológica frente a frente. Desde logo porque, para além das ideias de raiz dos dois treinadores (e suas escolas de origem e influência, como a italiana, notória na saudável obsessão posicional em Sérgio Conceição) há o conhecimento do meio (o campeonato e estilos das suas equipas) em que o vai colocar em prática.
Nesse sentido, não há dúvida de que o desconhecimento de Keizer do nosso futebol é decisivo (fatal) para as abordagens equívocas em muitos jogos (independentemente de lhes ter dado a volta ou perdido) em contraste com o vasto conhecimento de Sérgio Conceição de todos os contornos e subterrâneos do futebol português, características dos adversários e até, o mosaico de campos tão diferentes onde eles jogam e recebem os "grandes", crescendo competitivamente de tamanho nesse seu habitat. Nestes fatores, o nosso campeonato é dos mais específicos no contexto da realidade geral europeia tais os cenários diferentes (de estádio para estádio) que se encontram. Esse conhecimento (ou desconhecimento) muda tudo e ganha ou perde jogos. É inegável. Por mais boas ideias que o "treinador desconhecedor da realidade" tenha na origem, em tese.
O FC Porto não joga um futebol deslumbrante. É verdade muitas vezes durante os jogos, mas é uma equipa sempre equilibrada, com o tal "futebol consistente", sabedor do que tem a fazer em cada momento do jogo.
A "equipa-ladrão de jogo": o que fazer?
Esta é a única ideia positiva de jogo que conheço. Tudo o resto pode ser empolgante para um leigo tático assistir, mas quase sempre correndo o risco de fugir à realidade do jogo. Isto é, uma equipa pode entrar com essa tal ideia de jogar/construir e pegar/atacar o jogo com a bola, mas o adversário, por ser mais inteligente ou mais forte, pode chegar ao relvado e... "roubar-lhe" essa ideia, tirando-lhe a bola, a sua posse, com o seu maior poder.
O que não pode existir no futebol de uma equipa são dogmas de modelo de jogo.
Perante esta nova realidade, sendo obrigada a viver grande parte do tempo sem bola, a equipa da ideia do dito "futebol positivo" tem de procurar outra eficácia de jogo no momento defensivo em que, mesmo não querendo na sua ideologia, vai ter de viver a maior parte do jogo (sem bola, como é evidente). Isso implica, obrigatoriamente, que tem de jogar um "futebol... negativo"? Não, naturalmente que não. Terá é de ser inteligente para se adaptar às circunstâncias, ter uma estratégia de jogo que não subverta a sua ideia, mas que a adapte, em subprincípios, ao que o jogo e o "adversário ladrão de ideia" lhe impõe.
Terá de ser a tal equipa consistente, equilibrada nas ligações e distâncias entre linhas, e com capacidade para defender e atacar bem, mesmo com menos percentagem de posse. O que não pode existir no futebol de uma equipa são dogmas de modelo de jogo. Se há crítica tático-estratégica (dita pragmática) que se pode fazer à idolatrada escola holandesa é de, muitas vezes, não fazer essa cedência e querer jogar o seu jogo positivo de posse conceptual mesmo quando não há condições para o fazer eficazmente de forma a ganhar. É um dilema que se coloca mais, como é óbvio, nas equipas ditas mais pequenas ou quando perante adversários mais fortes.
Decisivo: saber onde se está a jogar!
É decisivo o treinador ser capaz de avaliar a realidade tática em concreto e adaptar a sua equipa a esse desafio do "jogo real". Como? Moldando o... modelo.
Mesmo tendo, por tendência, mais posse, tal não pode bastar para a "positividade ideológica" na prática concreta do seu jogo. Keizer não conseguiu perceber essas nuances de jogo em Guimarães e em Tondela.
O não conhecimento das idiossincrasias do nosso futebol, campos nos jogos fora, e tipologia de jogo adversário, foi decisivo para perder contra-estrategicamente esses jogos para Luís Castro e Pepa. Não os soube abordar antes nem lhes reagir durante. A sua ideia terá sido, em tese, positiva, mas sem... consistência (e inteligência) para o poder (saber) perceber e ganhar. Perdeu-os a partir do seu demérito tático. Foi algo que escapa ao romantismo do 4-3 em vez do 1-0. Foi algo que chocou logo por princípio contra o realismo de como... ganhar o jogo.
Sérgio Conceição nunca cairia numa armadilha ideológica destas. A sua experiência/raiz de escola latina/portuguesa, conhecedor desde o veneno das suas "equipas pequenas" em bloco baixo a defender (porque o jogo/adversário também o obrigava quando treinava clubes que não tinham bola) até à "equipa grande" que agora orienta, baseada em ataque veloz e vertical explorando a velocidade e potência dos avançados em profundidade.
Keizer tem a universidade holandesa de pensamento.
Mesmo no Braga ou no V. Guimarães, Sérgio Conceição soube perceber a importância do 1-0 e o perigo do 4-3. Isso nunca o tornou um treinador defensor de "ideias negativas" de jogo. Trata-se de perceber a realidade da equipa, do adversário, do jogo e suas circunstâncias, adaptando-a aos quatro diferentes momentos do jogo, sendo decisivo ser eficaz naquele em que for obrigado a viver mais tempo. É impossível fugir taticamente desta(s) realidade(s). O segredo está em a equipa ser consistente seja em que jogo for... obrigada a jogar.
Um treinador tem de perceber esses "diferentes jogos" (ou momentos dominantes pelo que o jogo passa) em 90 minutos. E ser competente, isto é, ser "futebolisticamente positivo" neles todos. Sérgio Conceição tem o mestrado latino desse entendimento. Keizer tem a universidade holandesa de pensamento. Será que pode moldá-la à nossa realidade com o tempo (sem, claro, perder identidade)? Este clássico já será um bom princípio de resposta.