PREMIUM >> A Covid-19 esvaziou estádios e relvados por todo o mundo, mas, o desporto rei continua a mexer com os adeptos, agora no universo paralelo da Playstation, Xbox e afins
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Há uma semana, quando adeptos e profissionais do futebol caseiro estavam ainda a digerir o insólito cancelamento dos campeonatos, uma das muitas medidas de contenção do surto pandémico de Covid-19 que viriam a alterar de forma drástica a rotina de milhões de cidadãos portugueses, o Braga agitou as redes sociais com uma ideia que teve o efeito de diluir o impacto da ausência de futebol.
Em vez de se conformar com a suspensão do encontro com o Santa Clara, anunciou que a partida se transferira para a Playstation e convidou o público a seguir, através da internet, uma versão virtual do desafio com os açorianos. Diogo Salomão representou o plantel de João Henriques e Ricardo Horta o de Custódio. O Braga venceu, por 0-4, e no final até houve flash interview de Paulinho, autor de três golos virtuais pela mão de Ricardo Horta (o outro golo foi dele, em todos os sentidos). A Liga agarrou a ideia e, neste fim de semana, reproduziu a jornada em duelos individuais de FIFA 20, à semelhança do que havia já sido anunciado em Espanha pela LaLiga e em Itália, na Série A. Sem poder sair para os relvados, o futebol refugiou-se no universo paralelo das consolas, onde o profissionalismo também rende aos craques, patrocinadores e organizadores.
A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) percebeu-o há três anos e tratou de agregar esta comunidade na plataforma esports.fpf.pt, onde, segundo os dados disponibilizados por Raul Faria, coordenador de eSports, "estão registados mais de 15 mil atletas, entre os mais de 150 mil jogadores praticantes, 250 clubes e mais de 12 mil jogos já foram disputados".
O futebol virtual federativo joga-se em três plataformas - Playstation 4, Xbox One e PC Origin -, em desafios individuais ou em equipas de dois ou onze elementos (vertente Pro Club) e congrega praticantes que aderiram em massa à possibilidade de competirem sob o selo desta instituição. No primeiro torneio, o Allianz Challenge, em 2017, na Cidade do Futebol, a casa das seleções nacionais, "milhares de jogadores" alinharam e, desde então, explica este responsável, "a evolução tem sido gradual com uma ligação muito próxima junto da comunidade". Já foram organizadas "mais de 30 competições", conta, entre as quais a "Liga Portuguesa, a Taça de Portugal e até mesmo a Supertaça, um dia antes da Supertaça de futebol".
Rastaartur e Tuga810: os Ronaldos
Recentemente, a FPF alinhou também nas "primeiras competições internacionais dedicadas a seleções tanto da FIFA como da UEFA" e os representantes portugueses saíram-se bem. "A FIFA eNations Cup foi a primeira e Portugal alcançou um terceiro lugar entre mais de 20 seleções de todo o mundo". Neste futebol em que a destreza não está nos pés, mas nas mãos que controlam os comandos das consolas, também há espaço para craques e o mais cotado no ranking caseiro é Gonçalo Pinto, conhecido como Rastaartur, um dos protagonistas da proeza na eNations Cup; o outro é Diogo Pombo, Tuga810 - ambos jogam no mesmo clube, TS Warrior, detido por um nome familiar dos relvados naturais: Toto Salvio, o argentino que representou o Benfica e se lançou no negócio dos comandos de consola personalizados. Na época passada, esta dupla ficou no top oito do FIFA eWorld Cup e, segundo as notícias então publicadas, garantiram cinco mil dólares em prémios; sem surpresa, são ambos profissionais de FIFA.
O dinheiro é uma parte importante também deste jogo - não apenas e nem sequer principalmente do futebol -, como se percebe logo pela associação de marcas comerciais aos torneios: Allianz, Red Bull, M&Ms ou Kia e se mede pelos prémios monetários em jogo. "Desde 2017, a FPF já distribuiu mais de 50 mil euros em prémios e vários momentos de glória, que permitem o início de uma carreira no futebol virtual", explica Raul Faria.
oão Velez passou muitas horas a jogar e a ganhar dinheiro. Hoje, quer fazer crescer o Tondela
"Ter uma marca como a FPF trouxe-nos credibilidade"
Imagine que um filho adolescente lhe diz que quer fazer carreira a jogar FIFA. A família de João Velez, 26 anos, sobreviveu a essa estranheza. "Entre os 18 e os 21 anos", foram muitas as vezes em que teve de repetir-lhes que "não podia ir jantar fora" ou a outros compromissos porque tinha de passar quatro ou cinco horas diárias na consola. Quando começou a ganhar dinheiro, tudo fez mais sentido. Tentava entrar em torneios todos os dias, o primeiro e o segundo lugar davam dinheiro e podia ganhar uns 50 euros. Hoje, este jovem empresário no ramo da ótica prefere o papel de manager e o projeto dele é o Tondela, no âmbito de uma parceria com o emblema da I Liga. O clube foi "o primeiro a oficializar a versão Pro Club", ou seja, aquela em que há 11 jogadores em cada uma das equipas.
Dar corpo a um projeto destes tornou-se mais simples com a entrada federativa. "Ter uma marca como a FPF trouxe-nos credibilidade", admite João Velez, que tem como meta tornar este departamento "financeiramente autónomo". Por agora, "sete patrocinadores" ajudam a fazer a diferença. Por exemplo, conta, só o Tondela e o Sporting têm "equipamentos dedicados", embora o projeto leonino, referência neste universo, disponha de um orçamento muito maior. João Velez usa a imaginação para atrair audiência: os jogos do Tondela, que podem ser seguidos online, designadamente, na plataforma twitch.tv, têm comentários em direto, através do Discord, uma aplicação de voz que põe os utilizadores dos jogos de consolas à conversa.
O talento na ponta dos dedos e não só
Armando Vale, 25 anos, é selecionador nacional e uma espécie de enciclopédia de eSports. Esteve no projeto do Sporting e trabalha na E2Tech, uma empresa que organiza torneios e eventos; está, por exemplo, na produção da reprodução da jornada que a Liga Portuguesa de Futebol Profissional promove este fim de semana. Conheceu os jogos virtuais quando era miúdo, em Seia, e as férias tinham imensas horas de futebol com o melhor amigo, na versão virtual e na rua. Já estudante universitário de Gestão de Relações Humanas, viu o curso interrompido por este desafio profissional. Como selecionador, o trabalho dele "é mais de análise".
No futebol de consola, o talento não está apenas na ponta dos dedos. Tem uma vertente de controlo emocional cada vez mais importante, na medida em que cada versão do FIFA há mais informação e detalhes a controlar. "Há jogadores de FIFA e jogadores de edições de FIFA", resume. Os primeiros são a elite: "Em cada uma das versões, mudam alguns detalhes e há os que, qualquer que seja a edição do FIFA, acabam por ter bons resultados". Ele trata de fazer essa observação e ajudar os melhores a serem ainda mais fortes nos torneios de seleções: com estágios, treinos, jogos particulares, toda uma rotina de alta competição que, no fim, produz jogadores de topo, seduzidos para atuar no estrangeiro com propostas financeiramente atrativas. Qualquer semelhança com o futebol a valer não é coincidência. É mercado.