O JOGO viaja com Ricky e Hassan, duas figuras míticas à década de 1990, quando Boavista e Farense, que medem forças no domingo, voavam bem alto, embalados por homens perigosos à solta no ataque
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Boavista-Farense é um clássico do futebol português, mais que tudo pelos grandes confrontos dos anos noventa, quando os axadrezados arranhavam os grandes e os algarvios se seduziam com aventuras europeias. Manuel José de um lado, Paco Fortes do outro, tantas vezes. Antes de ser campeão, o Boavista ainda lutou arduamente com o FC Porto por o ser, ficando impedido de sonhar com um deslize no São Luís, num 2-2, na penúltima jornada, valia de uma recuperação fenomenal do conjunto de Faro.
Axadrezados e algarvios cruzam-se em apertos classificativos, nada condizentes com o que viveram nos noventas. A Europa era mira de quem teve Ricky e Hassan como Bolas de Prata.
Falar do Boavista e Farense é também reportar a história goleadora de Ricky, 60 golos pelas panteras, e de Hassan, 99 golos pelos leões de Faro. Dois predadores indomáveis, um internacional nigeriano, outro marroquino, que até cativaram o Benfica, mas não chegaram a vingar na Luz. O legado de ambos tem a forma de monumento, nem que seja um nome a ecoar nos respetivos museus. Ricky fez-se o maior artilheiro do campeonato em 1991/92 com assombrosos 30 golos, conseguindo agarrar o troféu Bola de Prata, à frente de Cadete e Ziad. Anos depois, essa honra contemplaria Hassan, 21 golos em 1994/95, impondo-se a Domingos e Marcelo. Entre eles outra fera africana, também uma super águia, espantou todos: Yekini, no V. Setúbal. Desde Hassan, fora da esfera dos grandes, exalta-se mesmo a propensão africana a este desígnio, conseguindo Fary arrebatar corações no Beira-Mar e Meyong pelo Belenenses. Outros que chegaram ao topo foram Lima (Braga) e Taremi (Rio Ave).
“Fui eu que quebrei o hábito de o artilheiro do campeonato ser sempre um jogador dos grandes”
Ricky, a viver no Brasil, olha com encanto para o passado em Portugal, mais que tudo no Boavista. “Há mudanças de paradigma em tudo. Em 1991/92, fui eu que quebrei esse hábito de ser sempre um jogador dos grandes o artilheiro do campeonato português. Isso foi possível com muita determinação, muita dedicação e esse forte desejo de entrar de vez na história de futebol português. A minha dedicação começava nos treinos”, argumenta o nigeriano em conversa com O JOGO.
Também Hassan rejubila com as lembranças. “Significa muito ter sido goleador, ainda para mais num campeonato europeu com a importância do português. E jogando pelo Farense foi feito maior ainda! Foi um ponto muito alto para mim e também fez o meu orgulho como marroquino. Representei o país de uma extraordinária forma, após ter sido três vezes o melhor artilheiro em Marrocos. Ter alcançado o que alcancei no Farense foi algo único na carreira”, precisa o matador, que jogou o Mundial de 1994, assinando um golo à Holanda. Pouco tempo depois, começou a trilhar o caminho, arma mais certeira de Paco Fortes, até se consagrar goleador e ganhar transferência para o Benfica.
“O São Luís era um verdadeiro inferno em todos os jogos, estava sempre cheio. Ganhávamos aos grandes, que eram mais fortes do que são hoje”
“Essa época de 1994/95 foi muito especial, porque foi a primeira época que rendeu apuramento europeu ao Farense, depois do 5.º lugar. É uma recordação eterna minha e do clube. O São Luís era um verdadeiro inferno em todos os jogos, o estádio sempre cheio. Tínhamos os adeptos connosco e o grupo era fantástico, só tive ali grandes colegas. Ganhávamos aos grandes, que eram mais fortes do que são hoje e ainda nos batíamos com Boavista, Vitória de Guimarães, Marítimo e Braga”, elucida, recuperando uma imagem épica e duradoura: “Fico com a invasão de campo quando ficou selada a qualificação. Fui levado pelos adeptos numa volta pelo campo, uma coisa inesquecível, realizei nessa temporada um grande sonho”.
Mais furtivo à luz dos números, Ricky, com Manuel José em 1991/92, fechou a temporada marcando no Jamor, na vitória axadrezada sobre o FC Porto (2-1). “Tinha muita confiança da Direção, do Manuel José e dos companheiros. No balneário havia muita paz, muita amizade e brincadeira. Todos compravam o meu champô do povo e todos o usavam. Caetano, o saudoso Jaime Alves, o Nelo. A temporada começava forte na Urgeiriça, na pré-época. Ainda hoje falo com a maioria, amigos para o resto da vida”, conta Ricky.
"Ficou a nossa marca"
Ricky e Hassan não se cruzaram assim tantas vezes, o auge de um é ligeiramente distinto do outro. Mas vibraram em campo em muitos jogos entre Boavista e Farense. O marroquino fez pontaria às redes axadrezadas quatro vezes, três delas em Faro. Por sua vez, o nigeriano fez gosto ao pé duas vezes contra os algarvios, abanando a baliza com caráter decisivo no Bessa.
Ricky e Hassan trocam elogios e também tributam a força de muitos africanos no futebol português.
“Como eu signifiquei muito para o Boavista, o Hassan teve o mesmo papel para o Farense. Fomos dois africanos em evidência em Portugal, fomos importantes e ficou a nossa marca. Mas outros africanos fizeram grande história com boas passagens”, destaca Ricky. “Com o Farense eram jogos muito complicados e disputados. Adorava jogar no São Luís, mas apenas marquei no Bessa”, acrescenta o nigeriano. Hassan também mergulha no baú destes embates com sabor histórico.
"Como eu signifiquei muito para o Boavista, o Hassan teve o mesmo papel para o Farense"
“O Ricky era um excelente avançado, um grande goleador. Falar do Boavista daquela altura é falar de uma equipa fortíssima, composta por grandíssimos jogadores e o Ricky era um nome em destaque. Dava muito trabalho, era um rival terrível até para os grandes. Só me lembro de grandes jogos com o Boavista, de muita luta e de ter marcado um golo na minha última época que deu a vitória por 1-0. Foi mesmo a acabar, o árbitro apitou passado dois minutos”.
Que os golos de Ricky e Hassan inspirem também Bozenik e Poveda em nome de um espetáculo pródigo em furiosas finalizações.