O fim da regra dos golos fora: atacar longe de casa e apuramentos épicos na memória
E se o golo de Miguel Garcia, em Alkmaar, tivesse valido, apenas, os penáltis? Há vários casos de jogos memoráveis à boleia dos golos fora, mas a partir de 2021/22 há espaço para mais desempates no prolongamento e nas grandes penalidades.
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Lembra-se do golo de Miguel Garcia em Alkmaar, que deu ao Sporting a passagem à final da Taça UEFA, hoje Liga Europa? E do livre de Sérgio Oliveira em Turim, que valeu ao FC Porto a qualificação para os quartos de final da Champions, na época agora finda?
Pois bem, nenhum deles teria sido elevado ao estatuto de herói, caso ocorressem na próxima temporada. E porquê? Quer um, quer outro deram apuramentos baseados na regra dos golos fora contarem a dobrar, que servia para desempatar eliminatórias das provas UEFA, norma oficialmente abolida pelo organismo no passado dia 24 de junho.
A discussão não é de agora, conforme contou a O JOGO Jesualdo Ferreira - já lá vamos - e estava, para a UEFA, a contrariar a génese da proposta: incentivar as equipas a atacarem mais fora de portas. A partir de agora, as eliminatórias que acabem empatadas vão para o prolongamento e, caso a igualdade subsista, mesmo que sejam marcados mais golos, passam para as grandes penalidades. "As estatísticas de meados da década de 1970 até agora mostram uma tendência clara de redução contínua na diferença entre o número de vitórias em casa e fora (de 61% / 19% para 47% / 30%) e da média de golos por jogo marcados em casa e fora (de 2,02 / 0,95 para 1,58 / 1,15) nas competições masculinas, enquanto desde 2009/10 o número médio de golos por jogo se manteve relativamente estável na Liga dos Campeões Feminina, com uma média geral de 1,92 para as equipas da casa e 1,6 para as equipas visitantes", explicou o organismo, em comunicado.
Introduzida em 1965/66 para desempatar uma eliminatória da Taça das Taças entre o Dukla Praga (Chéquia) e o Honvéd (Hungria), a norma foi alargada para a então Taça dos Campeões Europeus, hoje Liga dos Campeões, em 1967. Pretendia-se, com isso, acabar com a necessidade de um terceiro jogo em campo neutro e encorajar as equipas a serem mais ofensivas, fora de casa. No entanto, o conceito inverteu-se. "O impacto da regra ia contra o seu propósito original, já que, de facto, impedia os anfitriões, principalmente no jogo da primeira mão, de atacarem, por temerem sofrer um golo que daria aos seus adversários uma vantagem crucial. Além disso, havia depois também injustiça do prolongamento dos jogos da segunda mão, que obrigava a equipa da casa a marcar dois golos quando a formação visitante marcava nesse tempo extra", sustentou Aleksander Ceferin, presidente da UEFA.
Portugueses aplaudem e não temem impacto físico
Jesualdo Ferreira e Miguel Garcia sabem o que é passar uma eliminatória à boleia dos golos marcados fora. Apesar disso, ambos convergem na ideia de que a norma estava ultrapassada. Tanto é que o tema vinha à baila nas reuniões dos treinadores da Champions, desde quando Jesualdo orientava o FC Porto. "Esta regra era discutida entre os treinadores da elite da UEFA e nunca estivemos muito de acordo. O Wenger e o Ferguson, por exemplo, não achavam que isso correspondesse à ideia de incentivar um jogo ofensivo, fora de casa. Até acho que incentivava mais as equipas a defenderem, tentarem um golo em contra-ataque e irem para a segunda mão lutarem por um 0-0", observou. De facto, Wenger criticou publicamente a regra, quando em 2015 foi eliminado pelo Mónaco. "Talvez devesse contar no prolongamento. É uma regra ultrapassada", comentou. "É algo que acaba por proteger as equipas ditas pequenas, de uma forma geral. Ainda para mais, agora sem público, a questão de jogar em casa e fora esbateu-se", acrescentou Jesualdo Ferreira.
Miguel Garcia, o herói de Alkmaar à boleia desta norma, confessa que nem se "lembrou" de como a história podia ter sido diferente, se ocorresse nos dias de hoje. Mas também "compreende" a decisão. "Fará com que as equipas não sejam tão defensivas a pensar que ainda têm a segunda mão em casa". A iminência de mais prolongamentos num calendário tão sobrecarregado, já alvo de várias críticas, não é um problema "que se ponha em causa". "Quem está nas competições europeias são clubes com grande poder económico e com plantéis equilibrados", refere o antigo lateral.
Luís Freitas Lobo, colunista de O JOGO, espera para ver. "Pode carregar mais os jogadores em casos de empate, mas compreendo que desportivamente já não faça sentido. O futebol evoluiu para outro tipo de jogo e já não se nota tanto o fator casa e fora", argumentou. Todavia, Luís Castro pende para um problema de maior cansaço. "Uma consequência desta mudança será o aumento do número do número de prolongamentos e, por isso, mas tempo de jogo para os jogadores, numa altura em que se sabe que os calendários estão...", afirma. Contudo, expressa que a mudança já "deveria ter acontecido mais cedo".
CONMEBOL vai analisar se faz o mesmo
A regra dos golos fora como fator de desempate foi introduzida nas competições da CONMEBOL - Copa Libertadores e Sul-Americana - em 2005, precisamente a reboque do que já acontecia na Europa. Ora, o organismo que gere o futebol sul-americano vai analisar se dá um passo atrás a partir de 2022. Aqui o tema também não é novo, escreveu o portal UOL Brasil, pois há dois anos, por sugestão do Brasil, o Conselho da CONMEBOL trouxe o assunto à discussão, porém não houve consenso para deixar cair a regra. No entanto, Alejandro Domínguez, presidente, não é fã da norma. O que acontece, segundo o UOL, é que federações mais pequenas veem no golo fora uma oportunidade de "equilibrar" confrontos diante equipas brasileiras e argentinas. Todavia, nos últimos quatro anos as finais tiveram sempre clubes dos dois gigantes da América do Sul.
Golos fora e apuramentos épicos
Só esta década, 17 eliminatórias da Champions foram decididas com base nos golos marcados fora. O JOGO compilou alguns duelos dos últimos anos, que se fosse hoje teriam ido a prolongamento ou grandes penalidades.
2004/05
Taça UEFA
AZ Alkmaar 3
Sporting 2
(após prolongamento)
(4-4 nas duas mãos)
Foi a 5 de maio de 2005 que Miguel Garcia deu ao Sporting, no último minuto do prolongamento em Alkmaar (Países Baixos), a passagem à final da Taça UEFA. A festa portuguesa foi épica, mas hoje não teria valido mais do que a possibilidade de ir a penáltis.
2010/11
Liga Europa
Braga 1
Benfica 0
(2-2 nas duas mãos)
O 5 de maio voltou a ser memorável para uma equipa portuguesa, mas desta vez para o Braga. Um golo de Custódio eliminou o Benfica, anulou a derrota de 2-1 trazida da Luz, e carimbou a presença inédita na final da Liga Europa. Aliás, os arsenalistas já tinham eliminado o Dínamo Kiev (Ucrânia), nos "quartos", beneficiando da mesma regra.
2008/09
Liga dos Campeões
FC Porto 0
Atlético Madrid 0
(2-2 nas duas mãos)
Em 2008/09, o FC Porto de Jesualdo Ferreira atingiu os quartos de final da Champions, onde só foi eliminado por um golaço de Cristiano Ronaldo, então no Manchester United. Nos "oitavos", valeu um empate, sem golos, no Dragão, que conservou o 2-2 trazido do Vicente Calderón.
2008/09
Liga dos dos Campeões
Chelsea 1
Barcelona 1
(1-1 nas duas mãos)
O tiki-taka do Barcelona de Guardiola parecia imbatível, mas os catalães estiveram com os dois pés foram da Champions até Iniesta, aos 90+3", num dos melhores golos da edição, naquela temporada, dar a passagem à final, face a um Chelsea irado com a arbitragem de Tom Ovrebo. O Barça acabaria por vencer a prova.
2017/18
Liga dos Campeões
Roma 3
Barcelona 0
(4-4 nas duas mãos)
Aquela noite de abril foi a mais especial que o Olimpico de Roma viu, nos últimos anos. Os romanos tinham que marcar três golos e não sofrer nenhum ao Barcelona, que goleara por 4-1 no Camp Nou, e conseguiram-no, com uma exibição memorável. Dzecko iniciou a reviravolta, concluída por De Rossi e Manolas noa segunda parte.
2018/19
Liga dos Campeões
Manchester City 4
Tottenham 3
(4-4 nas duas mãos)
Um dos melhores jogos dos últimos anos da liga milionária levou o Tottenham para as meias-finais. Fernando Llorente terminou com a festa do golo e reduziu a derrota dos londrinos a um 4-3 final, que serviu face ao 1-0 registado na primeira mão.
2018/19
Liga dos campeões
Ajax 2
Tottenham 3
O Ajax trazia uma vantagem de um golo sem resposta de Londres e tinha pé e meio na final da Champions quando ao intervalo ganhava por 2-0. Na etapa complementar, um hat-trick do furacão Lucas Moura, com o último golo a ser apontado aos 90+6", levou o Tottenham para a final, que perderia para o Liverpool.
2020/21
Liga dos Campeões
Juventus 3
FC Porto 2
(4-4 nas duas mãos)
Foi a jogar com menos um - expulsão de Taremi - e face a uma Juventus com intenções claras de ganhar a Champions que o FC Porto saiu a rir de Turim. Sérgio Oliveira, de livre, já no prolongamento, colocou os dragões na frente da eliminatória, Rabiot ainda a igualou, mas prevaleceram os golos fora, após um 2-1 no Dragão.