Motor que fabricou equipas de Primeira: rivais do calçado defrontaram-se na Taça de Portugal
Rivais do calçado cruzaram-se na Taça de Portugal e fomos conhecer histórias de antigos jogadores da Sanjoanense - Ricardo Tavares, e Felgueiras - Zamorano, que se renderam à ditadura de emprego nas cidades
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Foi curioso o último despique da Taça de Portugal entre Sanjoanense e Felgueiras, desnivelado no campo com os forasteiros a puxarem os galões de viverem um escalão acima, na II Liga, sustentado por outras condições, perante rival da Liga 3. O balanço de 0-4 promoveu a continuidade da prova dos durienses, reforçou uma tendência arrasadora para os homens de São João da Madeira, derrotados nove vezes em 11 confrontos, e sem qualquer vitória no saldo geral. Mais próximas estão as cidades nos lucros do seu negócio cimeiro, já que são capitais de dois polos líderes na exportação de calçado, sendo Portugal uma das maiores forças europeias no ramo. Entre fábricas e valências do setor, Felgueiras e São da Madeira levam décadas como motores da indústria e o futebol vive muito essa dependência no que se reporta a apoios, investimentos, suportes e até na definição das ambições de ambos os clubes. Sanjoanense teve a sua história de 1.ª Divisão nos anos sessenta, Felgueiras uma breve passagem com Jesus nos noventas. Sonhos de ribalta, de vida airosa e desafogada, potenciados tantas vezes pelas empresas de calçado. Era a Sanjo, em São João da Madeira, um apoio inestimável, por um poderio que gozava desde o seu arranque em 1933. Para o Felgueiras de primeira também contribuiu todo o fôlego e riqueza que adivinha da produção massiva de calçado e da entrada das peças nos mercados mais reputados do mundo.
A ligação com o futebol também se estende aos jogadores da terra, muitas vezes oriundos de famílias que tiveram a sua história no ramo.
Ricardo Tavares, antigo defesa-esquerdo, formado na ADS, internacional jovem, aproveitando passagens por Sporting e FC Porto, deu por encerrada a carreira desportiva, para se concentrar noutro trabalho. "É uma ligação que vem de menino, os meus pais começaram a trabalhar neste ramo e eu comecei a trabalhar com eles a partir de um ano em que não tive as propostas que desejava em termos de futebol", recorda Ricardo Tavares, de 30 anos. "Não tinha clube e comecei a trabalhar de manhã. Depois, mesmo arranjando clube, mantive o registo. Como foi aumentando a carga de trabalho, a responsabilidade, decidi tomar esta opção de deixar o futebol, já andava cansado psicológica e fisicamente", recua o antigo, ciente que o mundo do calçado, acompanhado da chapelaria, é sugador de atração variada em São João da Madeira. "É uma cidade muito ligada a essa indústria e temos aqui todo o tipo de componentes, do design à parte fabril. Mas, infelizmente, é também um setor com uma volatilidade muito grande. Mas noutros tempos, foi o calçado o grande motor da Sanjoanense. As dificuldades fizeram diminuir essa proximidade", confessa Ricardo Tavares, que trabalha no escritório no departamento comercial. Consciente está que o calçado ainda é imperial no concelho. "Tem uma importância extraordinária, porque primeiro faz parte da comunidade, e segundo tem esse peso na vertente económica. Emprega muita gente e também se aproxima da Sanjoanense e das pessoas. Não há clube aqui que possa viver sem essa sintonia", destaca o antigo defesa.
"Não tínhamos alternativas"
Também em Felgueiras, do futebol para o calçado é um salto ao virar da esquina, um caminho inevitável, por paixão e conforto, e muito contexto familiar. Fala Zamorano, emblemático médio do clube.
"O tecido empresarial do calçado é o grande suporte da região. Nas épocas em que joguei era indissociável, os empresários tinham enorme paixão pelo clube, injetavam apoios que ajudaram o Felgueiras a manter-se em ligas profissionais", avalia, particularizando a sua experiência no setor e os ciclos de aprendizagem.
"A minha relação é de família, os meus pais trabalharam uma vida no calçado, fui convivendo com as vantagens e desvantagens, ciente da importância de estudar para não cair por obrigação no ramo, porque em Felgueiras não tínhamos outras alternativas. Com o futebol como incerteza, tinha de estar precavido se as coisas não corressem bem", observa Zamorano, num mergulho a sensações e perceções mais longínquas. "O calçado era um espaço fechado, de muitas rotinas, e poucas condições na época. Felizmente as empresas evoluíram tecnologicamente e criaram outras condições. Mas antes não era assim e na minha mente estava sempre o futebol, não queria o calçado como solução" admite, parando num momento de reformulação do pensamento. "Só muito à frente, quando acabei a carreira percebi que, ficando ligado ou não ao futebol, tinha de entender que trabalhar no ramo era o mais viável se quisesse continuar em Felgueiras", relata, esmiuçando um processo que já o atesta como profissional qualificado com 15 anos de trabalho na área.
"Quando já não era profissional e treinava à noite, fiquei com muito tempo disponível, quis perceber da área, da matéria-prima. Entrei numa fábrica para ocupar o meu tempo e conhecer a dinâmica. Acabei por ficar cinco anos num armazém de matéria-prima", conta, partindo para a atualidade. "Depois recebi uma proposta para passar para uma empresa de componentes de calçado, onde estou há 10 anos. Convivo com várias empresas, imensas pessoas, e entendo a evolução das coisas. Antes não tinha qualquer visão", reconhece Zamorano, esperando que Felgueiras volte a ligar com sucesso o calçado ao chamariz do futebol. "As pessoas afastaram-se um pouco com a quebra que se acentuou. O clube começou a sentir falta de apoios, muitas empresas fecharam a torneira e vieram consequências duras. Não houve futebol sénior em Felgueiras alguns anos", analisa, debatendo diferenças para a equipa de primeira que ainda viu de perto. "Juntavam-se à mesa grandes empresários e apoiavam, de imediato, financeiramente o clube. Lembro o presidente Sidónio Ribeiro que tinha uma empresa e agregava ainda parceiros de direção dentro do mesmo ramo. Havia muito dinheiro", atesta Zamorano, lendo os dias felizes de 1997/98.
"Quando o Felgueiras chega à Liga, havia uma cidade à volta do clube, o setor uniu-se para fazer isso acontecer. O calçado era o motor quase exclusivo, tinha a grande fatia do apoio. Foi um grande empurrão, eram grandes empresários mas também apaixonados pelo clube. Com facilidade chegavam apoios e patrocínios, o clube pagava certo e bem e as pessoas andavam animadas", elogia, contrapondo com detalhes de uma bonança efémera. "O problema foi a descida imediata, trouxe desânimo e, no fundo, isso decide o futuro do clube nos anos seguintes. Viveram-se muitas dificuldades, certos empresários afastaram-se, os que foram chegando já não tinham o mesmo peso. Tudo esmoreceu", recorda o antigo médio, alegrado com um presente mais realista.
"Agora temos um Felgueiras de volta, hoje com uma SAD e alguém ligado ao calçado que fez parte da Direção no meu tempo. Estão aí os apoios mas distantes do que foram. Nunca mais se apoiou como se apoiava, porque perderam muito dinheiro no futebol. O mérito tem de ser dado ao Reinaldo Teixeira, pois ele é o suporte do clube."