O adversário do FC Porto tem onze anos de vida e muita história. Era uma vez um bilionário diferente dos outros que pensava antes de gastar...
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Se o leitor já jogou Football Manager (FM), então esta história é para si. O FK Krasnodar é uma espécie de FM da vida real. Sem jogadores como Tsigalko ou Tó Madeira (se jogou, sabe bem de quem falamos), mas antes um plantel escolhido criteriosamente e com suporte real. Nenhuma observação de jogadores dura menos de três meses. Esta é só uma das orientações de um livro de estilo escrito por Sergey Galitsky, o famoso dono do adversário russo do FC Porto. Mas já lá vamos. A história não começa aqui...
Em 2008, Sergey Galitsky sentiu que a sua vida precisava de um novo desafio. Os 15 mil supermercados que tem na Rússia deram-lhe bagagem para comprar o que quer que fosse. Sergey decidiu brincar ao futebol: haveria de criar um grande clube no Sul da Rússia (é natural de Sochi) e fazê-lo crescer de forma sustentada para que, depois dele, pudesse caminhar sozinho. "Escolheu a bonita cidade de Krasnodar porque, além de ser o centro empresarial em que mais tempo passa, tem um clima agradável e bem mais caloroso do que em Moscovo", contam-nos no Catran Hotel, onde a reportagem de O JOGO se instalou. "Em Krasnodar existia o Kuban. Tentou comprá-lo, mas o estado não deixou. Então fundou o FK Krasnodar e fê-lo crescer tanto que o Kuban desceu e terminou", completa Ruslan, um dos homens que fazem a segurança do Krasnodar Stadium, eventualmente o maior símbolo deste novo-riquismo. "Quando cheguei fui assistir à receção ao CSKA e o Krasnodar tinha poucas centenas de adeptos. Hoje tem-nos na Rússia inteira, porque todos simpatizam com este modelo, até pelo clube ser recente. E o Sul precisava de uma grande equipa", confirma Rui Miguel, médio-ofensivo do Trofense e um dos dois portugueses que jogaram no Krasnodar. "Jogávamos no estádio do Kuban, que desapareceu. Entretanto fomos melhorando, apareceu o estádio novo e os adeptos do Kuban passaram a ser nossos", completa Márcio Abreu, o outro. A operação de resgate estava concluída. Faltava o resto do plano do oligarca.
Abramovich é anti-referência, o clube é da cidade
Galitsky não queria comprar Eto"o, Roberto Carlos ou outros craques, como fez o Anzhi até se apagar. Aliás, chegou a dizer que não se revia em Roman Abramovich. E, por isso, começou por baixo. O clube tem 11 anos de vida e caminha a passos largos para uma nova ordem russa e, quem sabe, até europeia. Galitsky duvida, porque sabe que o campeonato russo nunca será tão apelativo e porque a lei dos estrangeiros não abre espaço a equipas monstruosas. Mas nem quer. O reforço da formação e da academia é paralelo ao crescimento da equipa principal. Tal e qual num clube a sério. "Não quer mercenários e acredita que o dinheiro deve ficar em Krasnodar, para as pessoas de Krasnodar desfrutarem e verem os vizinhos a jogar futebol a alto nível", contrapõe David Bagiyan, jornalista do SportBox.ru.
Centro de treinos à United e um ano de scouting
Em 2008, o Krasnodar estreou-se nas competições amadoras, mas não subiu de imediato. O clube só tinha um logotipo e pagava para treinar e jogar. Depois veio a estrutura, o centro de treinos, o estádio, os vários departamentos (psicologia, treino de alto rendimento, alimentação e nutricionismo, scouting e todos aqueles que pudessem elevar o rendimento da equipa principal) e a seguir os bons resultados. Desde 2008, a equipa subiu dois escalões (nunca conseguiu a promoção direta e beneficiou das desistências do FC Moscovo e do Saturn para ser repescado), estreou-se na I Liga, já esteve cinco vezes nas competições europeias - não termina abaixo de quinto há seis anos - e agora procura a estreia na Liga dos Campeões. "É o sonho dele. E, mais dois ou três anos, o Krasnodar é campeão da Rússia", vaticina Márcio Abreu. "Ele podia acelerar e ir buscar os jogadores que quisesse, mas prefere fazer as coisas devagar. É um projeto passo a passo. Chegou a ir de propósito à Alemanha comprar um aparelho para os jogadores recuperarem mais depressa. E tínhamos uma máquina na nossa base que climatizava o espaço a -100 graus para recuperarmos de imediato no final dos jogos. Quantos clubes têm isso?", questiona Márcio. "E o centro de treinos? É monstruoso! Um dia viu o centro de treinos do Manchester United [é fã assumido de Alex Ferguson], copiou a maquete e mandou construir. Tem dois campos cobertos e mais uma série de relvados naturais e artificiais, tem hotel para os miúdos, hotel para as famílias, escola, centro de estudos, tudo!", resume Rui Miguel, por quem o Krasnodar, na época da subida à I Liga, pagou um milhão de euros. "Quando fui assinar, disseram-me que tinham enviado uma pessoa para ver a época toda da I Liga portuguesa e encontrar um jogador para a minha posição", conta.
Fair-play financeiro à risca
Tal como no Football Manager, o presidente não quer exceder um orçamento que as cada vez maiores receitas do clube não possam pagar. Aqui a falta de fair-play financeiro não se coloca: em 11 anos de existência, o Krasnodar gastou "apenas" mais 20 milhões de euros em compras do que aquilo que faturou em vendas. Os 12 milhões de euros pagos por Cabella ao Saint-Étienne há duas semanas desequilibram a balança. Os reforços chegam quase sempre ao reboque dos observadores. O capitão (Martynovich), por exemplo, tinha 21 anos quando foi descoberto no Dínamo de Minsk, onde era suplente. O sueco Olsson e o islandês Fjóluson foram contratados num périplo pela Suécia. O marroquino Namli jogava no modesto PEC Zwolle, da Holanda, e Kaio Pantaleão estava no Santa Clara. A ideia é que o futuro esteja em casa. A formação começou com uma equipa de infantis e outra de iniciados, mas agora tem todos os escalões. "Tiro muito mais prazer da academia, que depende mais de mim", frisou à Imprensa local. "Quando a equipa for formada todos os anos por jovens da nossa formação, quero ver quem se ri de nós", prosseguiu, enquanto anunciava a criação de bolsas de acolhimento para que jovens talentos possam estudar e viver sem outra preocupação que não o futebol. A academia custou 80 milhões de euros, situa-se no meio do bosque e de centenas de árvores. Nela, os jogadores também aprendem... xadrez, para que desenvolvam o pensamento.
O modelo é para manter. "Galitsky quer ter o mesmo sucesso que na vida empresarial e sabe que só passo a passo o consegue. Tenta deixar a paixão de fora e gere o clube como uma empresa, sem devaneios. Acredita que, se conseguiu tornar-se milionário com o trabalho, também pode fazer do Krasnodar um clube grande sem ter de aplicar todo o seu dinheiro. Apenas a sabedoria", conclui David Bagiyan. Tal como no jogo...
Toques na bola e arma na mão
O FK Krasnodar é um projeto na primeira pessoa e muito invulgar em qualquer país do mundo. Na Rússia então, é um fenómeno. Galitsky descreve-se como um anti-Abramovich
Sergey Arutyunyan nasceu em 1967 nos subúrbios de Sochi, cidade portuária a 300 quilómetros de Krasnodar. A sua família (mãe russa, pai arménio) possibilitou-lhe estudar na Faculdade de Economia de Kuban, arredores de Krasnodar. Depois de cumprir uma experiência militar, terminou o curso com 26 anos e fundou de imediato uma empresa para distribuir perfumes e cosméticos. A crise soviética fê-lo entender que haveria algo melhor para vender: os produtos de primeira necessidade. E assim, em 1998, abriu um supermercado. Chamou-lhe "Magnit" (íman) e criou o slogan "Sempre a preços baixos". O sucesso estimulou o segundo supermercado e por aí sucessivamente. Ao fim de dois anos, optou por alargar a rede a todo o país e atualmente tem 15 mil lojas (entre as de conveniência, cosméticos, hipermercados e afins), que comercializam tudo e a todo o tipo de preços.
Em 2006, a cadeia estava já avaliada em 1,9 mil milhões de dólares e tornou-se cotada em bolsa. Em 2018, Galitsky (adotou o apelido da mulher, por se sentir mais russo do que arménio), vendeu 30% da participação social aos bancos a troco de 2,4 mil milhões de dólares. A empresa continua a faturar acima dos dois mil milhões por ano, com mais de 400 mil funcionários. O oligarca é um dos três maiores bilionários da Rússia (fortuna avaliada em 3,5 mil milhões de dólares) e está catalogado na Revista Forbes, entre o 600º e o 700º lugar mundial. Em matéria de excentricidades não se lhe conhecem muitas, embora Márcio Abreu se lembre de o ver chegar ao estádio de helicóptero. "E em carros completamente negros, todos fumados", ri. Além disso, é obrigado a andar sempre com seguranças. "Num dos primeiros treinos, vi alguns seguranças entrarem por lá de armas em punho e fiquei embaraçado. Apareciam quatro ou cinco para fazer uma primeira ronda e ver se era seguro que o carro entrasse. Depois então vinha o carro do presidente com mais quatro ou cinco", lembra Rui Miguel, que o descreve como um homem simples dentro do que o deixavam ser: "Em ambiente de treino, dava uns toques na bola e rematava à baliza. Era muito mais aberto do que o típico homem de leste". Abreu concorda. "Acima de tudo era muito presente e simples no trato connosco. Ia a todos os treinos, conversava tranquilamente. Quem visse aqueles filmes com os seguranças, nunca imaginaria", acrescenta Márcio. Resta dizer que o livro preferido de Galitsky é a biografia de Steve Jobs, fundador da Apple. Percebe-se porquê.
"Galiseu" custou quase 300 M€
A organização do Mundial"2018 também pagaria o estádio, mas a FIFA vetou a cidade de Krasnodar. A inauguração foi feita entre a seleção russa e a Costa Rica (vitória por 4-3 dos forasteiros) e o primeiro golo foi marcado pelo costa-riquenho Azofeita. Inspirada no Coliseu de Roma, a obra foi a concurso entre gabinetes locais. Os russos chamam-lhe o "Galiseu", numa mistura entre o nome de quem o pagou e arena romana que o inspirou. Com 35 mil cadeiras e um jogo de luzes a que nenhum outro recinto russo aspira, o "Galiseu" tem um ecrã gigante de 360º em todo o perímetro do campo e possibilita momentos únicos, como os golos do Krasnodar, festejados com escritos LED de ponta a ponta. O grande objetivo do dono do clube é que o estádio seja sempre lotado. Na Liga russa são raros os bilhetes que custam mais de dois euros. "O futebol e o clube são para todos", chegou a dizer. Até para os adeptos de Zenit, CSKA e Spartak que tiveram bilhetes de borla para ver jogos do Krasnodar, oferecidos por Galitsky, que como condição estabeleceu apenas que se portassem bem na cidade. De resto, a este estádio costumam ir estudantes e militares, franjas significativas da população da 17ª maior cidade da Rússia.
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