Há oito anos que não há I Liga em canal aberto e assim continuará. O Governo obriga à disponibilização dos jogos, mas os custos são incomportáveis. O Estado não é parte envolvida na negociação, diz a Secretaria de Estado com a tutela da Televisão
Corpo do artigo
Desde a época 2012/13 que não há jogos do principal campeonato em canal aberto (RTP, SIC e TVI). SportTV e BTV (Benfica) detêm a totalidade dos direitos de todos os jogos. Dos conteúdos de "interesse generalizado do público", só a I Liga não aproveita o despacho do Governo e permanece afastada da televisão gratuita.
Há mais de 20 anos que sucessivos e idênticos despachos qualificam praticamente os mesmos acontecimentos desportivos
Um tema antigo voltou, há dias, a entusiasmar os adeptos de futebol em Portugal: a possibilidade de verem um jogo da I Liga por semana num operador televisivo de sinal aberto, o que já não acontece desde a temporada de 2012/13. Porém, tal não passa de uma miragem, pois é praticamente impossível que tal venha a acontecer nesta temporada, apurou O JOGO junto de várias fontes da RTP, SIC e TVI, os operadores que poderiam usufruir do pressuposto de um despacho governamental que diz respeito ao principal campeonato, a exemplo do que acontece com os restantes acontecimentos desportivos de "interesse generalizado do público", que constam no mesmo documento.
O despacho, com o número 1153, foi assinado a 6 de janeiro por Nuno Artur Silva, o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media (SECAM). O documento foi, então, amplamente noticiado, com mais ou menos ligeireza na informação tornada pública, deixando no ar a ideia de que um qualquer operador televisivo de sinal aberto poderia, por decreto, adquirir esse conjunto de jogos (um total de 34 entre os cinco mais bem classificados das últimas cinco temporadas) aos operadores que são proprietários desses mesmos direitos de transmissão.
Na realidade, os detentores dos direitos estão "apenas" obrigados a disponibilizar o sinal "em termos não discriminatórios e nas condições de mercado", conforme está expresso no despacho governamental, mas não estão obrigados a vender por qualquer preço.
Contactada por O JOGO, a SECAM esclareceu: "O que a Lei da Televisão pretende acautelar, ao prever o despacho em apreço, não é a obrigatoriedade de os eventos elencados serem emitidos, mas a não oposição dos operadores que sobre eles detenham os direitos exclusivos, caso um operador de televisão que emita por via hertziana terrestre com cobertura nacional e acesso não condicionado (isto é, presentemente em Portugal, RTP, SIC e TVI) queira emitir tais eventos."
A interpretação mais popular do teor do despacho gera alguma confusão no que diz respeito, por exemplo, às obrigações de serviço público
"Assim, o despacho não pode ser lido no sentido de que em todas as jornadas será emitido um jogo na RTP, SIC ou TVI, mas no sentido de que se algum daqueles operadores desejar transmitir um jogo e estiver disponível para remunerar o detentor do direito, este tem de lhe ceder tal conteúdo", refere.
Assunto recorrente
e gerador de equívocos
O assunto é recorrente e até há quem defenda essa medida - um jogo por semana em sinal aberto - nas tutelas e estruturas da modalidade, como é o caso de Tiago Craveiro, diretor-geral da Federação Portuguesa de Futebol, que considera fundamental tornar o futebol acessível a muito mais gente. Por outro lado, a interpretação mais popular do teor do despacho - teor que é idêntico há mais de 20 anos - gera alguma confusão no que diz respeito, por exemplo, às obrigações de serviço público, as quais não devem ser chamadas a este debate, para evitar equívocos.
A verdade, segundo as fontes dos operadores ouvidas por O JOGO, é que o poder negocial está do lado de quem adquiriu os direitos de transmissão - Sport TV e BTV (Benfica) - e não entre os operadores de sinal aberto, razão pela qual os custos do sinal disponibilizado (os jogos da I Liga) são incomportáveis.
Após alguns com visibilidade na RTP - que transmitia uma vez por semana um jogo envolvendo os três grandes (FC Porto, Benfica e Sporting) -, os sucessivos despachos (conferidos, pelo menos, desde 1997), garantiram ainda a possibilidade de transmissão à TVI, entre 2010 e 2012. Em 2013, a norma governamental passou a envolver as cinco equipas mais bem classificadas nos campeonatos das cinco épocas anteriores, num despacho assinado por Miguel Poiares Maduro, então ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional. Mas foi nesse ano que terminaram as transmissões em sinal aberto.
O custo está sob o segredo do negócio, e "tem sido incomportável nos últimos anos", garantiu uma das fontes
Importa ainda referir que, há mais de 20 anos, sucessivos e idênticos despachos qualificam praticamente os mesmos acontecimentos desportivos de "interesse generalizado do público", o que, sublinhe-se, não deve ser confundido com "interesse público" (ver abaixo).
Todos os textos dos sucessivos governos, desde 1997, aludem aos jogos de futebol das seleções nacionais, às meias-finais e finais de competições europeias e mundiais, jogos olímpicos, fases finais de europeus e mundiais das restantes modalidades e Volta a Portugal em bicicleta, entre outros. E aparecem assinados, ao longo dos tempos, por antigos governantes, como Arons de Carvalho, Nuno Morais Sarmento, Augusto Santos Silva, Jorge Lacão e Miguel Relvas e Luís Castro Mendes, além dos já referidos Miguel Poiares Maduro e Nuno Artur Silva, este da atual tutela.
Há oito anos sem futebol
em sinal aberto
O mais recente despacho, tornado público a meio da atual temporada futebolística, sugere a disponibilização de sinal pela SportTV e BTV "em condições de mercado" não especificadas. Porém, a aritmética que obrigaria a calendarizar uma partida semanal dividida pelos cinco primeiros classificados das cinco épocas anteriores (cômputo do acumulado das classificações) implicaria as partidas em casa e fora de Benfica, FC Porto e Sporting, que são dos conteúdos mais valiosos do mercado televisivo. Isto é, sugere que os detentores dos direitos vendam, pelo menos, a preço de custo. Só que o custo está sob o segredo do negócio, e "tem sido incomportável nos últimos anos", garantiu uma das fontes.
A este propósito, a nota da SECAM enviada a O JOGO refere: "Na falta de acordo entre o titular dos direitos televisivos e os demais operadores interessados na transmissão do evento, há lugar a arbitragem vinculativa da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, mediante requerimento de qualquer das partes. Isto é, qualquer interessado (p. ex. RTP, SIC ou TVI) pode pedir a intervenção da ERC, sendo a decisão que esta vier a tomar de cumprimento obrigatório. Note-se que as decisões arbitrais têm igual valor às decisões judiciais (n.º 7, artigo 42.º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 dezembro)".
Ou seja, há oito anos que o principal campeonato só pode ser apreciado, sem qualquer subscrição específica e com custos financeiros, através do sinal da RTP Internacional, que não é visível no território nacional.
11800838
TRÊS QUESTÕES À SECAM
1 - A Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media pondera alguma medida ou promoverá alguma estratégia no sentido de concretizar o pressuposto quanto aos jogos da I Liga?
À Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media compete definir quais os eventos de interesse generalizado do público que devem ficar disponíveis para eventual transmissão em sinal aberto. Todavia, a norma não impõe que esses eventos sejam efetivamente emitidos, apenas institui a obrigação de os direitos serem cedidos aos operadores que emitem em sinal aberto que os pretendam comprar.
2 - As condições de mercado são livremente definidas entre os operadores ou pode algum organismo regulador mediar e/ou definir essas condições?
Estamos perante uma situação de liberdade negocial que é definida livremente pelas partes, não podendo o Estado intervir nessa matéria. De facto, trata-se de direito privado que não comporta qualquer intervenção pública, nem a lei o permite. A única forma de intervenção pública, está prevista no n.º 3 do art.º 32.º da Lei da Televisão, que, a pedido de qualquer um dos intervenientes na negociação, em caso de falta de acordo é cometida à ERC a competência de arbitragem vinculativa, ou seja, apenas por solicitação de um dos interessados, este mecanismo pode ser ativado.
3 - O modelo de negociação dos direitos de transmissão do futebol profissional, negociados individualmente por emblema, é um obstáculo?
O Estado não é parte envolvida nesta negociação, contudo, os contratos firmados no âmbito da transmissão dos espetáculos de futebol têm de ter em conta as limitações legais, nomeadamente as decorrentes da Lei da Televisão.
11802311
Interesse público é diferente de interesse do público
Nesta questão dos mais relevantes acontecimentos desportivos que devem ser transmitidos em sinal aberto há, também, uma enorme confusão, por parte do cidadão comum, sobre o que é interesse público e interesse do público.
Este despacho - como todos os anteriores - refere "interesse generalizado do público", algo que não tem nada a ver com o conceito jurídico-administrativo de "interesse público", que obriga os órgãos da Administração Pública, nomeadamente o Governo, à implementação de medidas no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Um equívoco que, normalmente, termina com os adeptos e os cidadãos em geral a criticar indevidamente a RTP, sobretudo, devido ao seu estatuto de canal público de televisão.