Há 50 anos, a liberdade chegou para todos: "Havia perceção que o Estado Novo não se devia meter tanto com o futebol"
Cinquenta anos de palavras e afetos, mãos dadas com a revolução que afastou a censura e deu espaço a distintas convicções. Também no futebol, é certo...
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O País mudou e respirou, Portugal rejubilou a 25 de abril de 1974... A revolução que dispensou sangue e instituiu o simbolismo do cravo em qualquer celebração da liberdade, agarra o seu meio século, uma existência dourada e transversal a qualquer domínio da sociedade. Bálsamo de uma expressão livre, sustento dos progressos sociais, o futebol também lidou com uma mudança de cara, embora não disfarçando um processo de adaptação, tamanha foi a necessidade de higienização de um meio conspurcado nos seus meandros, por marcas e tiques autoritários de diretores subalternos do Estado Novo. Era, no fundo, um desporto instrumentalizado pelo velho regime, que serviu, a certa altura, como bandeira do nacionalismo com uma assombrosa década de 60, marcada por dois títulos europeus do Benfica, uma Taça das Taças do Sporting e um 3.º lugar da Seleção em 1966. Muita da felicidade do povo numa vida com poucas tentações mundanas, residia no futebol.
João Nuno Coelho redigiu uma tese de doutoramento intitulada ‘Portugal Equipa de todos nós: Nacionalismo, Futebol e Media’
Mas antes do 25 de Abril sempre se falou que havia um xadrez desigual, já lá vamos perceber a sua veracidade com auxílio do sociólogo João Nuno Coelho. O certo mesmo é que transformou, por completo, o panorama ao nível de um mapa de forças com o Sul a perder expressão na 1.ª Divisão e o Norte a crescer exponencialmente, tanto numericamente como pela aura triunfadora de um dragão revigorado. O antes e depois também se escreve pelo apogeu de personagens, Pedroto e Pinto da Costa emergem como atores essenciais numa viragem do jogo e de discurso, algo que nunca poderia ser legitimado nos tempos de contrição da palavra em que qualquer ténue contestação sofreria severas represálias.
O golpe militar liderado por Salgueiro Maia ofereceu-nos a sensação mágica da democracia, o dormir sem receio do amanhã, sem o horror da perseguição mais feroz ou silenciosa. Aos jogadores, mesmo que estes, numa esmagadora maioria, não estivessem dentro do cariz da mudança, caiu-lhes o presente da liberdade de escolha. O passe livre foi conquistado numa luta sindical que vinha de 1971, comandada por Artur Jorge e António Simões, mas muito inócua. João Nuno Coelho guia-nos entre recortes e memórias de aturada investigação que até alimentou a sua tese de doutoramento - Portugal, Equipa de todos nós: Nacionalismo, Futebol e Media - sobre o futebol que vivemos e o seu aroma democrático de 50 anos, sem esquecer os seus dias de subjugação, ou os heróis que nunca se deixaram amordaçar.
“Os jornais da época, de certa forma, refletem ou legitimam o discurso do Estado Novo, quando tentam construir uma identidade e aludem a uma seleção plurirracial com muita influência do Atlântico e do Brasil”, invoca o sociólogo portuense. Mira no que era o salazarismo e o aproveitamento futebolístico das colónias.
Desafios silenciosos
Lembram-se os perigos vividos pelos que levantaram voz à censura. João Nuno Coelho desbrava-nos a coragem de alguns.
“Há o exemplo dos três jogadores do Belenenses que foram contra a saudação fascista num jogo em Lisboa entre Portugal e Espanha em 1938. Na formação inicial, José Simões e Mariano Amaro cerraram os punhos, Artur Quaresma deixou os braços caídos. Foram detidos, dois presos, mas como o Belenenses era um clube conotado com o regime e Américo Tomás um fervoroso adepto tudo se resolveu. Havia também uma perceção que o Estado Novo não se devia meter tanto com o futebol”, documenta o nosso historiador, identificando hostilidade mais apertada.
“Há um grande exemplo que vem dos ‘desafios silenciosos’, uma história narrada pelo Carlos Gomes na sua biografia, o antigo guarda-redes do Barreirense e Sporting, que terá sido dos personagens mais fascinantes da história do nosso futebol”, aponta, concretizando a mítica descrição feita pelo carismático homem que defendeu a baliza dos leões nos anos 50 antes de rumar a Espanha, jogar no Granada e Oviedo, regressar e partir sob o signo do exílio para o norte de África, onde jogou em Marrocos, Argélia e Tunísia.
“No Barreiro, ainda nos anos 40, terão começado esses desafios silenciosos, porque havia a tendência do pessoal aproveitar o alvoroço do jogo para berrar e insultar o regime. Eram, sobretudo, operários. E isto acontecia mais contra o Sporting, porque era a equipa vista por representar ricos e poderosos. Fossem jogos do Barreirense ou da CUF”, explica, chegando aos pormenores mais sombrios. “O Estado Novo, apercebendo-se disso, envia GNR armados com metralhadoras que se colocam na linha lateral com as armas apontadas para as bancadas. As pessoas passaram a estar caladinhas, narrando Carlos Gomes que era um cenário que causava arrepios.”