Futebol ainda é de alto risco: tráfico de influências visto como perigo a deter

TEMA - Processos judiciais e comissões de inquérito parlamentares com protagonistas mediáticos têm alimentado a perceção de que o poder político permanece permeável ao tráfico de influências, um vício também associado ao desporto profissional. A separação das águas permanece válida.
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Quase duas décadas de trabalho legislativo para organizar de forma transparente o futebol profissional, designadamente, com a criação das sociedades desportivas que gerem o negócio associado à modalidade, o tráfico de influências continua a ser visto como um alto risco.
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Exemplo disso são as propostas do PAN (Pessoas-Animais-Natureza) e do Partido Social Democrata que aguardam discussão na Comissão de Transparência e do Estatuto do Deputado. Em moldes diferentes, ambas visam separar os eleitos à Assembleia da República dos órgãos sociais dos clubes profissionais. Vários processos judiciais e comissões de inquérito parlamentares têm reforçado a perceção de permeabilidade do poder político a outras esferas. No que respeita ao futebol profissional, a discussão permanece válida, defendem especialistas ouvidos por O JOGO: Miguel Poiares Maduro, professor universitário que teve uma passagem breve e polémica pelo Comité de Governação da FIFA e Jorge Máximo, da associação Transparência e Integridade, coincidem na abordagem aos "conflitos de interesse" que se pode gerar, mesmo que a profissionalização tenha permitido estancar o desvio de verbas públicas para o negócio.
"Continuam a existir (ou a poder existir) dinheiros públicos", alerta Poiares Maduro, quando se lhe pergunta que tipo de influências podem os deputados traficar, se há quase 20 anos não há dinheiros públicos relevantes no futebol profissional. "Mesmo se não assumem a forma direta de subvenções aos clubes ou federação, podem existir através da cedência de terrenos, regimes fiscais ou alterações dos PDM, por exemplo", e suscitar "conflitos de interesse". "Eu acho, aliás, que isto é do interesse do próprio futebol", defende: "Se calhar, até existem justificações para o futebol poder estar sujeito a um regime fiscal mais favorável, como acontece noutras países como, mas a atual promiscuidade impede o sistema político de ter a credibilidade para o reconhecer, também porque não está disponível para impor o grau de escrutínio sobre essa área económica que deveria ser a contrapartida desse eventual regime fiscal especial".
Comissão de Transparência tem em mãos propostas do PAN e do PSD para impedir e limitar, respetivamente, a participação de deputados nos órgãos sociais de entidades do desporto profissional
Além disso, "para lá dos apoios económicos, o poder político regula, ou devia regular, múltiplas dimensões do futebol, das obrigações e reconhecimento de estatuto público às federações à legislação sobre as sociedades desportivas ou violência no desporto" e daí resulta "óbvio" que, "na medida em que deputados e outros responsáveis políticos detenham posições nessas organizações, podem encontrar-se numa situação de conflitos de interesse". Finalmente, "dependendo das posições que ocupem no mundo do futebol, os políticos podem estar a emprestar a sua autoridade a essas instituições, nota, cita como exemplo o "apoio do primeiro ministro ao presidente de um clube que está sobre investigação por outros organismos públicos: "Isto é seguramente problemático pois, não deve mas pode, ter um impacto na ação dos agentes públicos responsáveis por essa investigação".
Jorge Máximo, da direção da Transparência e Integridade, também estende a questão para lá das verbas públicas. "Existem questões de legislação e regulação, como direitos de imagem e transmissão, aposta desportivas, existem benefícios fiscais e, frequentemente, evasão fiscal, apoios institucionais, licenças para construção, etc. E é da necessidade de influenciar essas áreas que surgem dos problemas na relação com o futebol profissional", aponta, crítico da vaidade de quem tem por dever defender o interesse do Estado. "Existe uma excessiva promiscuidade, subserviência e tolerância dos poderes públicos para com as lideranças e atores ligados ao mundo do futebol. Aspiram beneficiar politicamente da sua notoriedade e visibilidade pública. Temem a sua capacidade de intervenção e influência no comportamento e nos julgamentos dos cidadãos. E isso torna-os vulneráveis e permissivos. O outrora vereador do desporto na Câmara Municipal de Lisboa entende que o "futebol profissional é ainda um círculo agregador e fechado de amizades entre poderosos de muitos setores e interesses": "Muitas decisões políticas ou negócios importantes nasceram da proximidade de interesses permitida por este círculo". "Os riscos existem e são de várias dimensões, não só ação, mas também por inação ou por omissão, sublinha, e dá como exemplo o Football Leaks: "Não é um caso isolado, é uma patologia pandémica".
"A criação de valor no mundo do futebol é um assunto tão difícil de compreender como o valor das bitcoins"
Os últimos tempos têm fornecido sinais evidentes de promiscuidade também a outros níveis, designadamente, com a área financeira, da advocacia ou da construção. Nada que dispense o escrutínio da modalidade que mexe com a paixão de milhares de cidadãos, refere Miguel Poiares Maduro. "A existência de eventuais conflitos de interesse noutras áreas não deve inibir-nos de os prevenir no futebol", nota, e admite que, "atendendo à sua base de implantação e apoio social", neste caso, "os riscos são maiores", sem que isso signifique uma posição radical: "Claro que há diferenças muito relevantes que justificam, mesmo no âmbito do futebol, respostas diferentes. Um ou uma deputada que está numa comissão parlamentar sobre desporto e depois vai presidir a um órgão da federação ao clube é bastante mais preocupante que um deputado que ser simplesmente sócio de um clube (o que não me parece problemático desde que o deputado em causa se abstenha de votar numa matéria que possa ter impacto no seu clube)". A prevenção é também o argumento de Jorge Máximo, para quem "a criação de valor no mundo do futebol é um assunto tão difícil de compreender como o valor das bitcoins".
A ancestral cultura da tentação
Longe ainda de gerar consenso, a formulação proposta para a alteração ao Estatuto do Deputado em discussão - devolvida pelo Parlamento à Comissão de Transparência - não é a única ferramenta para travar as ligações perigosas entre o poder político e o desporto profissional. "Os conflitos de interesse não se limitam, longe disso, aos deputados. Podem colocar-se em muitos outros cargos públicos e, muitas vezes, de forma mais preocupante", ressalva Poiares Maduro, "mas combater essa promiscuidade passa também por muito mais transparência e uma mais eficaz regulação das organizações desportivas". "Eu defendo reformas profundas nos modelos de governo de clubes, federações e ligas, e não apenas em Portugal", refere o professor universitário especialista em Direito Transnacional que, em 2016, teve uma passagem breve pelo Comité de Governação da FIFA, cerca de um ano incómodo: foi afastado na mesma leva das principais figuras do Comité de Ética que então investigava a corrupção no organismo que superintende o futebol internacional. Na altura, contou que se deparou com uma "cultura instalada há décadas que é resistente ao escrutínio e à transparência".
Ligações perigosas desde a FIFA até aos comentadores televisivos
A questão cultural também pode ler-se na resposta de Jorge Máximo, quando questionado sobre outras formas de combater a promiscuidade. "A alteração ao Estatuto de Deputado só é uma exigência porque o primeiro mecanismo de defesa, que é o sentido ético e a consciência dos próprios deputados, não tem sido suficiente", nota. "Há coisas que parecem óbvias ser incompatíveis, nomeadamente para um deputado a quem competem deveres de diligência, imparcialidade e legalidade. Todos têm o direito de ter paixões clubísticas, mas quando vemos deputados como comentadores desportivos questionamos qual o seu verdadeiro interesse?", questiona: "Ganharem visibilidade e notoriedade publicas para crescerem politicamente dentro dos partidos, ou apenas discutir lances e jogadas? Se for essa última, que o façam de forma reservada. Se for a primeira, é uma forma incorreta para a seleção natural dos melhores quadros políticos".
Essencial, refere o dirigente da Transparência e Integridade, é criar mecanismos eficazes perante os intrincados negócios do futebol: "Jogadores que ninguém conhece, e muitas vezes nem jogam, são transacionados por milhões entre clubes de dimensão regional! No meio uma rede complexa de contratos de exploração, agentes e comissões sobre múltiplos direitos normalmente registados em paraísos fiscais. Muitos ganham, mas poucos compreendem como foi criado tanto valor. O futebol vive numa bolha inflacionária e irracional que o fair play financeiro não consegue resolver. Os clubes colapsam financeiramente. Incumprem nas suas obrigações. Empresas e trabalhadores são prejudicados, mas o referido mundo oculto continua a ganhar rios de dinheiro. A diretiva de branqueamento de capitais exige que os negócios ligados às transações de direitos desportivos sigam os deveres de diligência, atuação e reporte previstos para as entidades financeiras e advogados, mas quantos os estarão a cumprir? Quem controla e quem os escrutina? Há ainda muito passos a dar nesta matéria".
