"Estive perto de Sporting, FC Porto e Benfica. Não entendo porque não fui para um grande"
<strong>ENTREVISTA - </strong>É uma lenda do FC Seoul e uma das mágoas que guarda é não ter jogado num grande. Aos 45 anos, Ricardo Nascimento vive no União de Lamas a primeira experiência como treinador principal.
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A viver a primeira experiência como treinador principal, no Lamas, Ricardo Nascimento tem razões para estar "muito feliz pela vida profissional" que teve, sobretudo pelo que fez como jogador. Faltou, assume, representar um grande, o que esteve muito perto de acontecer.
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De que mais se orgulha na sua carreira?
- De praticamente tudo. Das pessoas que conheci, de culturas diferentes, e da minha maneira de ser. O futebol transmitiu-me honra e humildade e fiquei uma pessoa melhor. Já não sou jogador, sou treinador, é nisso que estou focado. O que aprendi quando era jogador é muito importante agora, tal como as pessoas, espetaculares, que me rodearam.
E treinadores?
-Com todo o respeito, há treinadores com os quais aprendemos como não se deve fazer. Não me parece pertinente e nem me fica bem falar de pessoas que têm a mesma profissão. Gosto sempre de dizer bem. O míster Carlos Brito e o professor Neca foram extremamente importantes. Há mais, mas esses dois cativaram-me imenso pela forma como viam o jogo e se relacionavam com o jogador. Isso ajuda-me muito nesta primeira experiência como treinador principal.
Havia quem defendesse que era um pouco tonto, e provavelmente por isso não foi mais longe. Concorda?
- Claro que não. Digo o que dizia sempre na altura em que era jogador. Tive sempre uma grande humildade, respeitei sempre todos os treinadores e os meus colegas de profissão e acabei a minha carreira de jogador com grande orgulho. Não há ninguém que diga, conscientemente, que prejudiquei alguém. Já passou, não guardo rancor a ninguém. Com todo o respeito pelos demais, fui um mágico, um jogador acima da média e orgulho-me de, ainda hoje, ter colegas e adeptos que só dizem bem de mim como ser humano e como profissional.
"Fui um incompreendido. Completamente incompreendido"
Passados estes anos como se sente?
- Fui um incompreendido. Completamente incompreendido. Cheguei a um balneário de campeões, no Boavista, ainda hoje sou bem tratado sempre que lá vou. O treinador era o senhor Manuel José. Apareci com uma boina, com o cabelo comprido e tinha rapado o cabelo por baixo. Era uma coisa da música que gosto e aquilo foi um choque.
Que música?
-Música gótica. Sisters of Mercy, a minha banda preferida, ainda hoje a ouço. Houve alguém que me tirou a boina, o cabelo caiu para a frente dos olhos, na altura usava uma fita, e aquilo foi um choque tremendo. Ainda hoje não percebo. E temos jogadores com crista vermelha e tatuagens no crânio. Não vejo mal nenhum porque estamos a cometer um erro grave quando catalogámos uma pessoa pelo aspeto exterior. O meu aspeto não era de nenhum javardo.
"As pessoas não estavam preparadas para ver um miúdo de 18 anos que usava uma fita no cabelo"
Como era então?
- Era educado, apenas tinha o cabelo comprido. As pessoas não estavam preparadas para ver um miúdo de 18 anos que usava uma fita no cabelo. Prejudicou a minha imagem porque quando me punham a jogar era o melhor em campo e, sinceramente, não percebo. E, na altura, havia muita gente que usava o cabelo comprido. Até diziam que era um convencido, mas não sei o que é isso. Com todo o respeito por toda a gente, tinha capacidade para aceitar as decisões do treinador e se ele me metesse um minuto entrava com mentalidade para resolver e às vezes até marcava um golo.
"AINDA NÃO ENTENDO PORQUE NÃO FUI PARA UM GRANDE"
Ao definir-se como "um mágico", Ricardo Nascimento não tem dúvidas de que tinha condições jogar num grande. "No futebol existe um "fondue", uns pauzinhos para tirar a carne e quando tiraram não saiu de lá o meu nome. Não há outra forma para explicar as coisas, mas isso não é um bicho de sete cabeças", garante, não entendendo, no entanto, porque não teve essa oportunidade. "Estive perto do Sporting, do FC Porto e do Benfica. Foi a única vez que tive empresário - o falecido Manuel Barbosa, uma pessoa fantástica -, não sei se isso me ajudou. Foram os únicos dois anos em que fui representado por minha vontade. As coisas não se proporcionaram. Não posso dizer mais do que isto. É a vida", completa, com um encolher de ombros.
"BARTOLOMEU? NÃO ME ORGULHO DA RESPOSTA"
No final do jogo em Esmoriz, um repórter de uma rádio perguntou-lhe como se chamava e Ricardo respondeu João Bartolomeu. O vídeo tornou-se viral.
Porque disse o nome do antigo presidente do Leiria?
- Não sei, podia ter saído Gertrudes ou algo assim parecido. Aproveito para esclarecer. O senhor, como qualquer pessoa, não precisa de saber o meu nome. Antes falei com todos os jornalistas, este senhor foi o último que me abordou e disse "já agora como é que se chama". Encolhi os ombros e, com a adrenalina do jogo, saiu-me aquilo. Não me orgulho da resposta que dei, mas não estava a gozar com ninguém.
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Mas a seguir falou do Real Madrid-Barcelona e tinha sido um jogo do distrital...
- A ver se o homem se tocava! Ironizei um bocadinho, espero que o senhor não tenha levado a mal. Há, porém, sempre aqueles profetas da desgraça que aproveitaram para dizer que havia falta de humildade. Não é verdade. Sou o oposto. Sou super-humilde, rigoroso e trabalhador.
Os seus treinadores diziam que tinham uma personalidade muito forte. Continua a ser assim?
- Claro. Não podemos perder a nossa personalidade. Temos de fazer uma adaptação ao contexto onde estamos. O Lamas está no distrital, é amador, tem muitas dificuldades e uma Direção que faz tudo para que não nos falte nada. Eu e os meus adjuntos estamos neste clube para apresentar soluções e dar alegrias aos adeptos, sobretudo à claque, fantástica, os "papa tintos".
CURTAS
No 25 de abril embrulhado no xaile
Ricardo nasceu a 19 de abril de 1974 em Vila Nova de Gaia. "Seis dias depois, o meu pai, Manuel João, foi com os amigos festejar para a Avenida dos Aliados a intervenção do nosso povo, que bem haja a Revolução de Abril. A minha mãe, Maria Odete, pensou "não vamos ficar em casa" e então embrulhou-me num xaile vermelho e lá fomos nós. Também estive nessa Revolução", conta, com um sorriso, uma história recordada pelos pais.
No clube das lendas do FC Seoul
Há dois meses, o FC Seoul criou uma lista das lendas do clube. "Soube da notícia pelas redes sociais. Lá estava o "portuga" no meio deles", conta. "Os adeptos enviam-me mensagens privadas diariamente e disseram-me que iam fazer isso e nos jogos mais mediáticos exibem a minha bandeira com a minha face e a palavra "Spirit", que é o espírito que eles gostam que os jogadores tenham. É um culto que me enche de orgulho", confidencia.
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Treinador deu dois estalos num jogador...
Entre muitas histórias do clube sul-coreano, onde também jogou Franco, antigo central, Ricardo recorda um treinador que, segundo se dizia na altura, mandava os jogadores estrangeiros sair do balneário para agredir os compatriotas. "Uma vez, num estágio, o tradutor veio dizer-me: "Temos de nos ausentar". Saímos da sala, onde o treinador estava a dar a palestra e não vi ninguém a bater em ninguém, mas chegou-me a informação de que o treinador tinha dado duas estaladas num jogador. Mas este apresentou-se depois tranquilo", recorda.
... "parte cultural" que está dissipada
Ricardo Nascimento sublinha que "a dureza é uma parte cultural que está cada vez mais dissipada na Coreia do Sul". "Arrisco-me a dizer que isso acabou", acrescenta, elogiando o excelente trabalho que Paulo Bento tem feito na seleção sul-coreana.