Juiz da AF Leiria, 43 anos, nasceu sem audição, mas isso não o impediu de ser jogador e treinador de futsal, antes de se dedicar ao apito.
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Foi em 2004 que a arbitragem portuguesa passou a contar com um árbitro surdo. Pedro Costa, 43 anos, filiado na AF Leiria, foi o pioneiro e teve que desbravar um mundo desconhecido.
Nasceu com surdez geneticamente herdada dos pais, mas isso não o impediu de viver e conviver com o desporto desde muito novo. "Fui guarda-redes de futsal, depois desempenhei funções de treinador de uma equipa de futsal de surdos e mais tarde passei para a arbitragem. Concluí a formação em futsal, futebol e futebol de praia e sou árbitro desde 2004", apresenta-se Pedro Costa a O JOGO, expressando-se por videoconferência em língua gestual, com a interpretação de Cidália Jesus.
Para quem não conhece Pedro, associar a arbitragem à surdez pode parecer um bicho de sete cabeças. Mas o juiz desmistifica a ideia. "São 20 anos de arbitragem e quase toda a gente me conhece. No primeiro ano foi confuso, pois as pessoas não sabiam lidar com um árbitro surdo. Sentiam desconfiança, questionavam se eu conhecia as regras do jogo, mas depois disso as preocupações desapareceram. Nas formações tenho a presença de intérprete de língua gestual e no meu dia a dia desportivo comunico por escrito com os meus assistentes. Na viagem para o jogo acertamos agulhas e os delegados das equipas quando me veem já sabem como agir. Comunicamos por mímica, por mensagens no telemóvel e se do outro lado estiver alguém desconhecido, um dos assistentes resolve. Quase nem é preciso comunicação, é tudo natural", garante. E se um jogador insultar Pedro Costa? "Vejo logo pela expressão o que me estão a dizer. Se estiver de costas, o assistente chama-me, aponta para o jogador ou diz-me o número e depois no fim explica-me o que ele disse. Nunca tive um jogador a encostar-me a cara ou a crescer para cima de mim. Normalmente dirigem-se aos meus colegas", revela.
Se o controlo do jogo nunca fugiu muito às rédeas de Pedro Costa, o facto de ser surdo fê-lo deparar-se com alguns episódios discriminatórios. "Uma vez, num jogo de futsal, adeptos entraram pelo campo dentro, houve alguém que me ofereceu porrada, mas a polícia controlou a situação. Não me esqueço desse episódio, mas mais tarde quando voltei a esse pavilhão correu tudo bem. No futsal também já tive gente a puxar-me pelo braço e a protestar faltas. O jogo foi interrompido e chamei as forças de segurança para afastar as pessoas", descreveu.
Enquanto atleta, a discriminação também existia por parte dos adversários e até dos árbitros. "Dou um exemplo: a equipa de surdos ganhava à de ouvintes por 4-0. Os adversários tinham muita dificuldade em aceitar o resultado, porque partiam do pressuposto que os surdos não podiam ganhar. Os árbitros também deviam levantar a bandeira como uma sinalização visual, já que não ouvíamos o apito, e muitos não aceitavam fazê-lo", recorda.
No entanto, nem tudo é mau. A AF Leiria, enfatiza Pedro Costa, foi parte essencial na integração do juiz na arbitragem. "Em algumas associações são criadas barreiras no acesso à formação. Tiveram que ver que eu era capaz para as coisas começarem a mudar. Fui o primeiro árbitro surdo em 2004 e há quatro anos surgiu um segundo, na AF Coimbra, que só apita futsal e que agora está na AF Setúbal. O terceiro árbitro, também de futsal, apareceu na AF Lisboa, há dois anos, porém há colegas com limitações pois as associações não aceitam pagar despesas inerentes como o intérprete de língua gestual, enquanto a AF Leiria apoia-me incondicionalmente", valoriza. Pedro Costa vê-se a arbitrar até aos 45 anos e depois gostaria de "formar" jovens árbitros surdos.
Liga NOS era possível... mas sem VAR
A introdução do videoárbitro barrou a possível ascensão de um árbitro surdo à primeira categoria. E, sobre a nova tecnologia, Pedro Costa tem visto algumas desvantagens. "O VAR tem mais poder de decisão e ficou num nível superior ao árbitro. Isso está errado. O VAR fez com que o árbitro tenha que ser menos esforçado. Agora há duas decisões, enquanto antigamente era só uma. E nunca poderia apitar na Liga NOS, pois não conseguiria comunicar com o VAR, mas antigamente podia. A tecnologia traz vantagens, mas também aspetos negativos", enumera. O clima hostil em torno dos juízes "é difícil", mas o árbitro já sabe para o que vai quando tira o curso. "Quem investe nessa área tem que pensar na família e sabe que está sempre em risco. Um árbitro vive sempre com medo e tem preocupações constantes", conclui.