
Conceição e Jesus falham clássico de dia 23 devido a castigo
Gerardo Santos/Global Imagens
O estado de emergência que vigorou em Portugal devido à covid-19 e implicou a suspensão dos prazos processuais teve um impacto significativo no trabalho da Comissão de Instrutores da Liga, com quase uma centena de processos em mãos. Os clubes também ajudaram a tornar tudo mais lento.
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O caos provocado pela covid-19 também contagiou a aplicação da disciplina. Há dezenas de processos na Comissão de Instrutores (CI) da Liga, acumulados pela suspensão dos prazos processuais durante o estado de emergência.
O atraso foi também favorecido pelo facto de as diligências terem deixado de ser feitas presencialmente e, finalmente, os clubes também contribuíram, ou seja, trataram de aproveitar para adiar o inadiável. A contagem decrescente para os clássicos que colocarão frente a frente FC Porto e Benfica, nos dias 23 e 30, para a Taça de Portugal e para o campeonato, respetivamente, ficou marcada pelos castigos aplicados a Sérgio Conceição e a Jorge Jesus, respetivamente, pelo Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
Num país onde a polémica se instalou como forma de viver quotidianamente a modalidade, desta vez, a centelha foi o tempo que passou entre as infrações, banais à luz das regras e do sangue quente dos protagonistas da Liga Bwin e a decisão dos recursos apresentados. Para lá do ruído que os emblemas trataram de garantir ao tema ficou uma evidência: passaram dez meses desde que o treinador portista se declarou "roubado" no jogo com o Belenenses e mais de sete desde que Jesus se expos à sanção disciplinar por apontar defeitos à "balança" do árbitro Artur Soares Dias no encontro da 31ª jornada da época passada, com o rival do Dragão, e isso indica que algo vai mal.
Processos acumulam-se
Os números do mais recente documento da Secção Profissional do CD relativamente aos processos por decidir, difundido no site da FPF na terça-feira, mostram que a CI está inundada de trabalho. O registo que passou a ser publicado na era de José Manuel Meirim na presidência do CD indica que há 96 processos em fase de inquérito na CI, meia dúzia com audiência disciplinar agendada e três concluídos à espera de decisão do organismo federativo. No primeiro grupo há um processo remetido ainda em 2018, quatro de 2019, nove de 2020 e os restantes são do ano civil que está prestes a terminar. Estes números não incluem as decisões sumárias divulgadas após cada jornada das ligas Bwin e SABSEG, mas as que implicam diligências ou mereceram contestação por parte dos visados, frequentemente, com o propósito de adiar sanções. Disso são exemplo os casos de Sérgio Conceição e Jorge Jesus que têm sido notícia: é das regras que a cordialidade deve prevalecer entre todos os agentes desportivos, por isso não são toleradas críticas ao caráter dos árbitros, por mais frustrante que seja não ver assinalado um penálti evidente. Os treinadores até podiam, no calor do jogo, não ter noção da infração disciplinar que as palavras representavam, embora esta seja clara e difícil de contornar - impossível, mesmo, como se viu pelos recursos rejeitados pelo CD, que serviram apenas para adiar o cumprimento do castigo anunciado. Se a decisão surgiu em cima dos clássicos, com evidente prejuízo do espetáculo, por mais críticas que se façam ouvir isso resulta apenas da conclusão dos processos - que se quer cega à conveniência do calendário.
Em setembro de 2019, Fernando Torrão, diretor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada, sucedeu a Cláudia Viana [ver texto ao lado] como presidente da Comissão de Instrutores da Liga: são quatro (eram dois quando Pedro Proença assumiu a presidência) e não trabalham em regime de exclusividade. Esta semana, esteve presente na reunião de Direção, como sucede a cada três meses, e foi referido o atraso que se verifica desde o início do ano, consequência da suspensão dos prazos, durante o estado de emergência.
Obstáculo... remoto
As diligências por via remota representaram outro obstáculo, porque implicam o envio do registo para ser assinado - ou corrigido, se o inquirido assim o entender, o que implica nova troca de correspondência e abre a porta a mais atrasos, que se podem estender por semanas. Depois, há ainda os recursos, e o apetite dos clubes pela litigância parece insaciável. O caminho entre o envio dos processos à CI e o regresso para decisão pode ser longo, penoso, e torna-se incerto de época para época, à medida que as sociedades desportivas introduzem alterações ao Regulamento Disciplinar. Ao decidir sobre as sanções a que ficará sujeito, o futebol profissional trata de se defender com a aprovação das normas que, no momento, parecem mais favoráveis - e que não hesita em alterar, na época seguinte, se verificar que não convêm. Um regulamento com menos subterfúgios e mais sólido ao nível dos prazos seria uma ajuda para a aplicação do poder disciplinar, mas essa não tem sido a prioridade de quem faz as regras.
Autorregulação: conquista em risco
A autorregulação foi uma conquista muito importante da Liga no longo e polémico caminho para a autonomia do futebol profissional relativamente à Federação Portuguesa de Futebol, e é inegável que as últimas décadas representaram um ganho tremendo ao nível da qualidade organizativa e até de credibilidade das competições. Defendê-la é essencial para a sobrevivência da Liga como responsável pelo negócio, em vias de ser fortalecida com o arranque do processo de centralização dos direitos televisivos, a fatia mais lucrativa e apetecível do futebol profissional. Até hoje, esta divisão não é pacífica na estrutura do futebol, e disso foi prova a tentativa frustrada de anular essa autonomia pela via legislativa, à socapa, na era de Passos Coelho no Governo.
Esta divisão ao nível institucional torna ainda mais complexa a já de si extremamente trabalhosa tarefa de instrução dos processos. No entanto, e mesmo que este atraso que se verifica atualmente tenha uma explicação evidente, os problemas não são uma inevitabilidade. Ou seja, para lá das queixas dos clubes pelas regras que eles próprios criam, a legislação permite fiscalizar a aplicação de um poder de natureza pública que, por agora, permanece enredado numa teia de recursos, diligências sujeitas a manobras dilatórias e mais recursos, até não sobrarem protagonistas para ir a jogo em dois clássicos. Entretanto, nos gabinetes da Liga, quatro instrutores tentam o milagre de desembaraçar-se de mais de uma centena de processos cuja urgência, seja na instrução ou na decisão, não anda ao sabor da conveniência do calendário - e, às vezes, corre mal aos clubes.
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