No FC Porto, Angelino Ferreira testemunhou o impacto da troika na indústria. Em conversa com O JOGO, o economista explicou o que mudou desde então e o que pode vir a acontecer agora
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A última crise cortou o acesso do futebol ao financiamento bancário, mas os efeitos não foram tão fortes como aqueles que se vão sentir nos próximos tempos. Sabemos que o mundo inteiro está nesta viagem sinuosa pela covid-19, com impactos profundos a nível sanitário e económico, e ontem foi como se os passageiros tivessem ouvido "brace for impact" - preparem-se para o impacto.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta a "pior recessão desde a Grande Depressão [1929], e muito pior do que a Crise Financeira Internacional [2008]". Só para se ter uma ideia, a contração da economia mundial em 2009 foi de 0,1% e prevê-se que em 2020 seja de 3%.
Portugal, conforme mostra o gráfico em baixo, terá uma queda e uma retoma mais ou menos na mesma linha que economias europeias mais robustas, mas esse eventual crescimento célere está assente na mera hipótese de a atividade económica começar a libertar-se do confinamento na segunda metade deste ano. A duração da pandemia está envolta numa "tremenda incerteza" e o próprio FMI sublinha que há "riscos severos de um resultado pior".
No meio deste mar de dúvidas, é pertinente recorrer a quem navegou na última grande crise. Angelino Ferreira, ex-vice-presidente do FC Porto e responsável pelo departamento financeiro dos dragões entre 2010 e 2014, não tem dúvidas: o futebol vai enfrentar um "desafio muito mais difícil" e terá de "repensar um modelo esgotado há muito".
"A preocupação [dos bancos] é a de recuperar créditos que ainda possam ter em alguns clubes. O financiamento bancário já é praticamente inexistente"
"Pela própria natureza da crise e pela escala. Na altura tínhamos contratos televisivos com valores anuais de 20 milhões de euros, hoje valem mais do dobro. Por outro lado, a atividade está parada, é só um acumular de prejuízos, porque não há receitas", justifica o economista em conversa com O JOGO. Aquele "crash" de 2008 viria a provocar sequelas mais tarde, a partir de 2013, com a entrada da troika.
"A banca teve orientações expressas da autoridade europeia da concorrência que limitaram a concessão de créditos a clubes de futebol. A preocupação é a de recuperar créditos que ainda possam ter em alguns clubes. O financiamento bancário já é praticamente inexistente", explica Angelino Ferreira.
"Há clubes que têm de refinanciar as operações de emissão de obrigações e que dificilmente poderão fazê-lo"
Foi assim que as SAD se viraram para o mercado de capitais e para os empréstimos obrigacionistas, "mas esse financiamento também está comprometido agora". "Há clubes que têm emissões de obrigações a vencer, que têm necessidade de fazer o refinanciamento dessas operações e que dificilmente poderão vir a fazê-lo. Por este lado, está cada vez mais restrito."
Também não valerá de muito depositar esperanças nos patrocínios, porque essas empresas, "por mais bem preparadas que estejam, vão ter questões financeiras para resolver". "É natural que haja um decréscimo bastante expressivo na sponsorização", projeta Angelino Ferreira, "convicto" de que esta situação "vai conduzir os clubes a uma nova etapa": "O "downsizing" [projeto de restruturação para a racionalização de despesas]... Orçamentos de 100 e 140 milhões... os clubes não têm condições que possam suportar orçamentos do nível que tinham até agora."
"Os clubes vão ser conduzidos a uma nova etapa: o downsizing"
No âmbito desportivo, os impactos mais notórios serão, naturalmente, no mercado de transferências. É que quando a troika virou tudo do avesso, os clubes ainda podiam partilhar passes com fundos de investimento, agora é proibido. Para fazer face ao "decréscimo de valores e quantidade" nas contratações, Angelino Ferreira crê que a "aposta na formação deve ser cada vez mais forte", mas a ideia já nem é de agora.
"Já há muito tempo que é necessário repensar a estratégia dos clubes. Este momento vai acelerar isso", sublinha o economista, com a esperança de que também se dê um passo rumo à centralização dos direitos televisivos:"É fundamental para dar outras condições ao futebol português. Praticamente todos os países têm isso assegurado. Somos nós que estamos certos?"