MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL - Itália-Alemanha (RFA), a meia-final vertiginosa que só a consagração do Brasil perfeito obscureceu
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Cartões amarelos e vermelhos, televisão a cores, uma bola de pentágonos e hexágonos pretos e brancos, a primeira edição do campeonato do mundo de futebol disputada noutra região que não a Europa ou a América do Sul.
E então aconteceu o sublime: cinco golos nos 30 minutos de prolongamento.
À partida para o Mundial de 1970, a realizar no México, o lugar na história estava praticamente garantido, mais que não fosse por esses anúncios de modernidade que haveriam de mudar o futebol - e, de algum modo, o mundo - para sempre.
E funcionou tudo. A utilização de cartões por parte dos árbitros conquistou a memória coletiva (embora nenhum jogador tenha sido expulso, coisa que nunca mais aconteceria), a transmissão em direto e a cores transformou o paradigma do futebol na televisão, a bola Adidas Telstar haveria de marcar gerações e o chamado "jogo belo" jamais pararia de globalizar-se.
Mais: a vitória do Brasil na final, com um categórico 4-1 imposto à temida Itália, haveria de consagrar essa equipa de Pelé, Jairzinho, Gérson, Carlos Alberto, Rivelino e Tostão como "A Equipa do Século" - não só por essa implacável vitória final, mas pelos triunfos em todos os jogos da competição desde o início das qualificações. Acontece que o melhor, o melhor mesmo, acontecera três dias antes da final, a 17 de Junho, na meia-final entre a Itália e a Alemanha (ou RFA, República Federal da Alemanha).
Chamaram-lhe "O Jogo do Século" também, e ainda hoje o Estádio Azteca - igualmente palco da final de dia 20 desse mês - exibe uma placa onde se lê: "El Estadio Azteca rinde homenaje a las selecciones de Italia (4) y Alemania (3), protagonistas en el Mundial de 1970 del "Partido del Siglo", el 17 de junio de 1970." Evidentemente, a proclamação é discutível.
Todos nós seríamos capazes de nomear fortes concorrentes a essa condição de melhor jogo de sempre: o 3-2 da RFA à Hungria na final do Mundial de 1954; talvez o 5-4 do Liverpool ao Alavés na Final da Taça UEFA de 2001; pelo menos três embates entre Portugal e França, isto é, ambos os 2-1 com perdemos as meias-finais dos Europeus de 1984 e 2000 e o 1-0 com que vencemos o Europeu de 2016, ademais com o golo de bandeira do improvável Éder; claro, o triunfo do Liverpool sobre o Milan na final da Liga dos Campeões de 2005, num desempate por penáltis vindo de um 3-3 final (e este de um 3-0 parcial para os italianos); a reviravolta "in extremis" (2-1) do Manchester United contra o Bayern na final da Liga dos Campeões de 1999; ou o - como poderia faltar? - Argentina-Inglaterra dos quartos-de-final do Mundial de 1986, incluindo "A Mão de Deus" e "O Melhor Golo do Mundo", ademais com a Guerra das Malvinas ainda a cicatrizar.
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Mas qualquer critério minimamente objetivo para a escolha do melhor jogo de sempre exige pelo menos cinco condições: equilíbrio competitivo, a dimensão daquilo por que se joga, a qualidade do jogo, o drama do resultado e a qualidade das prestações individuais. O RFA-Itália de 1970 teve tudo isso - incluindo cinco golos no prolongamento, recorde nunca igualado. E não é por a Itália ter vindo a ser afinal cilindrada pelo Brasil, deixando as equipas europeias fora do título, que aquele jogo não merecia um filme.
O Estádio Azteca, com capacidade total para 107 mil pessoas, estava tecnicamente cheio, com mais de 102 mil espectadores presentes. O Brasil tinha acabado de bater o Uruguai por 3-1, assegurando o primeiro lugar na final, e Itália beneficiava de um tónico suplementar para se lhe juntar: sendo ambos bicampeões do mundo, um deles faria o tri e, portanto, ganharia o direito a conservar para sempre a Taça Jules Rimet, forçando à produção de novo troféu.
E foram realmente os italianos a adiantar-se no marcador, com Boninsegna a marcar aos oito minutos, num remate de pé esquerdo desferido da meia lua. Entretanto, os alemães deram tudo por tudo. Beckenbauer fez uma luxação num ombro e jogou o resto da partida com um colar cervical. A luta foi épica, de parte a parte, mas só nos descontos dados pelo árbitro mexicano Arturo Yamasaki Maldonado, e depois de uma jogada pela esquerda, o defesa alemão Schnellinger, com toda a carreira feita em Itália, igualou a partida.
"Logo ele. De todos os jogadores possíveis!", exultou o comentador da televisão alemã. Viria a ser o único golo de Schnellinger em 47 jogos com a camisola da RFA.
E então aconteceu o sublime: cinco golos nos 30 minutos de prolongamento. Primeiro marcou a Alemanha, por intermédio de Mueller (94"). Burgnich empatou para Itália aos 98", mas Riva deixou os italianos na frente aos 104". Aos 110", Mueller voltou a marcar, restabelecendo a igualdade a três. Mas ainda as estações de televisão de todo o mundo repetiam as imagens desse golo e já Rivera (111"), entrado no início da segunda parte, batia Sepp Maier por uma última vez, colocando a Itália na final. Tudo com nota artística, vigor atlético e uma resistência inevitavelmente épica à altitude e ao calor em que se jogou aquele Mundial, como, aliás, voltaria a acontecer em 1986. Talvez nem tudo esteja perdido quanto ao Catar"2020, portanto...