Antigo médio recorda dérbis de outrora, a passagem pelo FC Porto e trocas de galhardetes com João Pinto quando já estava do outro lado da cidade. Torce para que os axadrezados evitem a descida.
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Dono de uma história ímpar no Boavista, quase 200 jogos, Bobó foi um nome essencial das panteras, certificado de músculo e mística durante os anos noventa do século passado. O médio foi um pilar com João Alves e mais cresceu com Manuel José, funcionando como peça vital e imprescindível no resguardo da linha defensiva. Também viveu múltiplos confrontos com o FC Porto, entendendo as picardias, o ambiente a ferver e o caldo que tantas vezes entornava entre rivais da cidade. A emoção casava com o jogo antes de começar, um baile de sabores e de contas por ajustar. O guineense, que até se estreia na 1 Divisão contra o Boavista, num dos 10 jogos que faz com a camisola do FC Porto, cimenta o pavimento rochoso do meio-campo axadrezado anos mais tarde, implacável nos duelos. Antes de um Boavista-FC Porto tão temperado de expectativas, alimentado de sentenças, decisivo para a própria sobrevivência da pantera no escalão maior e para o pódio dos dragões, conversar com Bobó é perder os sentidos no prazer da memória.
Portista de infância, boavisteiro pelo protagonismo de xadrez ao peito, o antigo médio, de 62 anos, espelha o seu posicionamento para o grande duelo no Bessa. “Vou ter de estar do lado do Boavista, sei que vai estar concentrada em 90 minutos muita emoção, grandes sentimentos e alguma nostalgia. São duas equipas obrigadas a vencer, mas vai ser o jogo mais importante da história recente do Boavista, desde que regressou à I Divisão. Acredito que pode ganhar”, afiança.
Bobó explica o posicionamento do lado das panteras. “Vão atacar este jogo, não podem contar com o último jogo, que pode não chegar. Sou boavisteiro sem reservas neste jogo, porque é uma decisão muito importante, uma salvação em causa. Uma descida seria muito má. Não esqueço os melhores anos da minha carreira, foi onde joguei mais tempo, onde fui capitão”, discorre, muito animado pelas indicações frescas de uma equipa picada pela energia do escocês Stuart Baxter. “Senti uma grande alegria nestes últimos jogos. Foram vitórias fundamentais, fiquei satisfeito com o impacto do técnico. Já vi, na realidade, o Boavistão, algo ressurgiu, a equipa foi buscar outras forças, foi ao fundo do coração. Houve vontade e querer na superação destes obstáculos. Revi o velho Boavista, deu-me prazer”, confessa, agarrando as referências que visualiza nesta reação, ensaiando troca de cromos entre os 90 e o presente. “Olho para Seba Pérez e o Agra, que dão muita alma ao jogo, nunca se dão por vencidos. Acredito que esses dois podiam discutir um lugar no plantel na nossa altura, por essa imagem à Boavista”, afirma, acautelando papéis. “Atenção, não seriam titulares, tínhamos muita qualidade, mas podiam estar no plantel e serem muito úteis”, garante.
“Fui a última aposta de Pedroto”
Bobó recua aos tempos em chegou ao FC Porto, iniciava-se a década de 1980, estreando-se na época 81/82. Vinha de Canchungo, na Guiné-Bissau, bastião portista no país. “A minha família era portista, exceção feita a um tio. Tinha pósteres, em casa, das Antas e dos melhores jogadores. Quando cheguei não acreditava no que estava a viver, embora tendo a deceção de uma primeira dispensa. Fui para o Vilanovense, quatro meses depois, mas foram-me buscar de volta. Estava ao lado do Gomes, Lima Pereira, Rodolfo, Costa, Romeu, Frasco. Estava petrificado. Jogava em pelados e quando pisei a relva das Antas deitei-me. Achava que me ia coçar, de reação, e nada disso aconteceu. Era outro mundo para mim”, partilha o antigo médio.
Depois, cruza-se com Pedroto, retendo imenso do mestre e ficando com carreira intimamente ligada a um dos criadores do grande FC Porto. “Foi tudo espetacular, o míster Pedroto gostou logo de mim. Acho que fui o seu último achado ou aposta. Se ele não tivesse morrido, talvez tivesse sido ponta-de-lança ou médio-ofensivo. Marco o golo da vitória em Penafiel, rendo o Gomes, e esse é o último jogo dele no banco. Depois, a doença retirou-o de perto de nós. Quando sentia os jogos difíceis, confiava em mim como avançado”, lembra, estreado, porém, por Hermann Stessl, em 81/82. Precisamente contra a pantera. “Foi curioso, o meu primeiro jogo na I Divisão acaba por ser contra o Boavista. Conseguimos vencer, entrei com tudo. Deixei a minha qualidade e passaram a olhar-me com respeito”, vinca o antigo médio.
“Vamos matá-los”
Depois de passagens por Águeda, Marítimo, Varzim, V. Guimarães e Estrela da Amadora, Bobó estabilizou a carreira no Bessa e sempre se agigantou contra o FC Porto, em duelos de intensidade máxima. “Eram grandes jogos, não faltavam picardias e provocações, muitos ainda se lembravam de mim no FC Porto. O João Pinto e o André nem me olhavam no campo, mas mandavam umas bocas do género ‘Bobó, és da família’. Quando os jogos lhes corriam mal, eles desapareciam, quando eu chegava perto com o mesmo comentário. Na linha lateral, em cada lançamento, o João Pinto era tramado, se me via, tentava meter-se à sua maneira”, rebobina Bobó, puxando ainda a fita daquele jogo envolvido por momentos que não se apagam.
“Vivi grandes jogos e fizemos ótimos resultados diante do FC Porto, em casa e fora. Se ganhávamos não era sorte, éramos, efetivamente, melhores. Lembro especialmente um jogo da Supertaça, a duas mãos, em que fomos vencer nas Antas por 2-1. Saímos a perder para o intervalo, mas as instruções do Manuel José tinham sido de aguentar a pressão. Quando nos apanhou para a segunda parte, só disse ‘agora vamos matá-los’. Foi dito e feito, lançou o Marlon e o Artur e eles marcaram os golos. Eu fiz um grande passe para o Artur para o segundo. Foi um jogo impressionante”, partilha. “Nunca nos faltou capacidade e coragem contra os grandes, nunca os temíamos. Que apareça novamente esse espírito. Eu sou portista mas, neste jogo, estou a cem por cento com o Boavista, pela minha história no clube e pelo que significa este momento”, classifica.