Primal Scream surge como cabeça de cartaz, ao lado de Jesus and Mary Chain e Slowdive, do festival galego Atlantic Fest. Febre portuguesa dispara até Villagarcía de Arousa. Fica o retrato do vocalista da banda de Glasgow, um homem que respira futebol em cada concerto
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O Atlântico traz a brisa e as ondas entram de enxurrada na Praia da Concha. Ondas sonoras que vão cobrir uma paisagem, subir a temperatura e definir sem medo o aconchego de uma densa plateia. Em Villagarcia de Arousa acontece mais uma edição do Atlantic Fest, um festival recorrente na região, sempre banhado pela Ria, que, outrora, tinha a designação do Festival do Norte.
Primal Scream, Jesus and Mary Chain, e Slowdive formam o triângulo de luxo que invade este pequeno paraíso galego a 18 e 19 de julho, ainda com música a subsistir a 20, no domingo. Uma aliança escocesa já comum, vista por exemplo em Vilar de Mouros, até porque Bobby Gillespie, o infecioso vocalista dos Primal Scream foi baterista dos Jesus and Mary Chain nos oitentas, antes de se focar por inteiro nas obras da sua banda de autor, que se tornou de culto a partir do lançamento de Screamadelica em 1991. Com este álbum, o seu single Loaded, os Primal Scream transportaram a energia das suas composições, a sua aura de festa e pista, a sua fusão eletrónica com funk e soul para imensos domínios, galvanizando plateias e tribos.
Tocar na banda de Glasgow é falar de Bobby Gillespie, um camaleão impressionante vestindo e despindo estilos, ao longo dos anos, mudando constantemente o caminho, mas sempre um furacão de adrenalina e soberba encarnação em palco de qualquer época, desde que regida por malhas dançantes. Endiabrado, cheio de epifanias roqueiras, assaltando corações na sua pura diversão, tabelando com diferentes drogas a cada disco. As duas horas que separam Matosinhos de Villagarcía, rota fabricada aqui, pela germinação das suas cidades, unidas por um porto, tradição pesqueira e muitos restaurantes, convidam a uma descoberta do Atlantic Fest e dos mais variados recantos espalhados pelos concelhos da ria de Arousa, onde também pontifica a própria ilha.
Bobby Gillespie, um eterno jovem, fará dos Primal Scream, formados em 1982, protagonista das atuações de sábado, já depois das viagens imperdíveis de sexta, que serão produzidas pelos Slowdive, donos de um primor arrebatador conjugado com um poder imersivo, desarmando ouvintes, atraindo o público para um cenário de extrema candura e sublimes arranjos, no balanço exímio do furor do shoegaze e da delicadeza pop, também pelos seminais Jesus and Mary Chain, mestres e profetas do ruído alternativo, aclamados desde Psychocandy em 1985. Com albúns relativamente novos, Everything is Alive, é a última libertação discográfica dos Slowdive, de Reading, ao passo que Glasgow Eyes, de 2024, foi o derradeiro enredo sonoro apresentado pelos Jesus and Mary Chain, as duas bandas vão fundir, sobretudo, massas de gente ferozes de ruído, de faísca instrumental, de shoegaze e eletricidade impregnada nas guitarras, efeitos abundantes e barulheira desenfreada. Já os Primal Scream defendem-se em solo galego com Come Ahead (2024), que arranca com Ready to Go Home e Love Insurrection, abraçando caminhos de 1994 de Give Out But Don't Give Up. É um disparo no passado com pontes para o futuro, na força da consciência política, e também melancolia nos intervalos.
Bobby Gillespie, que decidiu homenagear o pai na capa do disco, um grande ativista social, tem batalhado pelo povo da Palestina, sido incisivo em algumas mensagens, e, desde 2022, liderou uma campanha que juntou o afeto e a causa humanitária e se reuniu com o futebol, de forma solidária, concebendo, com apoio de uma marca e de claque Green Brigade, uma camisola desportiva, chamada Palestinadelica,onde figurava a capa do disco icónico dos Primal Scream, a bandeira palestina, os aros do Celtic, e o logo de uma equipa de uma campo de refugiados sedeado na Cisjordânia, em Belém, chamado Lajee Celic. Um grito de resistência desde 1947, de paixão pelo jogo como ferramenta para crianças e adolescentes fintarem o terror quotidiano. Com várias reposições da venda desse singular equipamento, Bobby ajudou e muito na angariação de donativos para estes jovens que ganharam uma t-shirt carregada de valores. Também o francês Eric Cantona se associou à campanha.
Falar de Bobby Gillespie é também um legado de eterna paixão pelo Celtic, de um adepto fervoroso dos católicos de Glasgow desde a nascença, fiel à sua história e irmandade irlandesa. Com cinco anos sentia as vibrações da maravilhosa equipa de Jock Stein, que havia sido campeã europeia em 1967, precisamente em Portugal. Só faltaram ser cantados, mas os 'Lisbon Lions' são uma inspiração do miúdo Gillespie e do músico mais indie cool do planeta. As confissões surgiram no seu livro autobiográfico Tenement Kid. Bobby e os amigos da época ferviam de entusiasmo por uma equipa ter-se agigantado pela força do caráter com jogadores oriundos na totalidade de Glasgow e da periferia, armados para serem combativo pelo mítico Stein, de carisma equivalente a um punk. Para Gillespie, esse Celtic foi a metáfora perfeita para os seus concertos, pelo apelo de ir buscar forças à alma em palco. O vocalista é um apaixonado pelo futebol e pelos artistas que o fizeram, sempre descrevendo que uma "banda de alta energia é semelhante às melhores equipas da história", impondo nessa narrativa ligações ao Brasil de 1970, Holanda de 1974, Argentina de 1978 ou Barcelona de 2008. Mas, entre estas, exalta-se a afinidade especial com a geração brasileira do México, que encantou o mundo com Pelé, Tostão e Rivelino. E o amigo de Bobby: Jairzinho. Antes de 1970, num treino em Glasgow, em 1968, o líder dos Primal Scream, com seis ou sete anos, contactou com todos, só não estava Pelé. No final houve autógrafos para os curiosos miúdos escoceses e Bobby levou uma recordação que guarda até hoje. Dei um chuto para Jairzinho e ele devolveu-me a bola. Posso dizer que joguei com Jairzinho", contou nas suas íntimas falas sobre o futebol.
Vendo os Primal Scream na Galiza, como tantas outras vezes em Portugal, de Paredes de Coura a Vilar de Mouros, é injeção de adrenalia que eleva o astral, mas também há no trajeto e na atualidade o combate premente pela Palestina e um incondicional adepto do Celtic, um clube que consegue em todos os momentos da história, congregrar na sua devota plateia, um incomensurável respeito pelos valores do desporto e da vida.