Álvaro Magalhães e Shéu recordam Taça UEFA de 83: "Não nos deixaram dormir e roubaram-nos o peixe"
Em 1983, o Benfica começou a perder a Taça UEFA em Bruxelas. Vai hoje a Bruges tentar apagar a memória. A decisão dessa prova foi feita a duas mãos e as águias não deram a volta em Lisboa à derrota na Bélgica. Álvaro Magalhães e Shéu, presentes nessa contenda, veem uma equipa sólida e imune a descontrações.
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O Benfica entra hoje em Bruges à procura de dar um passo importante para os quartos de final da Liga dos Campeões. Na luta por repetir o feito de 2021/22, os encarnados encontram o Club Brugge, porém lembrar-se-ão, certamente, do desfecho negativo da final da Taça UEFA de 1983, quando o Anderlecht ganhou a prova.
Nessa equipa estavam Shéu e Álvaro Magalhães, dupla que revelou memórias com 40 anos de idade, acreditando que o Benfica pode mudar a história.
"Esse jogo é muito difícil de lembrar. As memórias não são boas porque não ganhámos. Perdemos de forma tangencial, mas ainda hoje há a sensação de que foi uma oportunidade perdida. Podíamos repetir a história europeia do Benfica", principia Shéu, recuando à derrota por 1-0 em Bruxelas, seguida de um empate por 1-1 na Luz, em final a duas mãos.
"Foi um jogo reconhecido a nível mundial. Disseram que há 20 anos que não se via uma final daquelas. Tínhamos condições de poder ganhar, éramos uma das melhores equipas da Europa, mas eles tinham um grande nível", vinca Álvaro Magalhães, lamentando "a falha nos detalhes" e também admitindo a valia rival: "Não era fácil ganhar aos belgas, jogavam muito bem técnica e taticamente. O Benfica não ia a finais europeias há 15 anos, mas não havia um peso acrescido. Quem entrava naquele balneário sabia da enorme responsabilidade. Só se falava em ganhar."
A conversa seguiu para a perda de força do futebol belga. "Tinham um futebol muito difícil. Sabíamos que iria ser muito complicado. Na Bélgica havia grandes jogadores, mas começaram a vendê-los e a apostar na formação e a pensar num futuro a cinco anos. Nunca voltaram ao ponto de partida, o futebol ficou mais caro e, não tendo os seus clubes nas provas europeias, fica mais difícil para eles", explana Shéu.
O antigo centrocampista, o carregador de piano daquele Benfica, recusa, por isso, que o Brugge, que derrotou o FC Porto na fase de grupos, seja um alvo fácil. "Na altura, incomodava-nos muito o que estava no ar, que esse jogo, que essa final eram favas contadas. Sabíamos que não era assim. Era preciso um Benfica de primeira água para ultrapassá-los. E agora é assim também. É importante que os jogadores não se distraiam. Quem andou no terreno não pode pensar que está ganho. Nunca se ganhou um jogo antes de acontecer. A equipa tem tido uma concentração máxima, independentemente dos adversários. De certo modo, isso descansa-nos. Estou confiante."
"O Benfica gosta destes jogos e vai fazer um bom jogo. Os jogadores gostam deste ambiente. Têm de jogar à Benfica, com concentração e total empenho", acrescentou Álvaro Magalhães, que apontou nomes para possíveis decisores do jogo. O treinador acredita que "Rafa, mesmo não tendo a melhor forma física, desequilibra pela velocidade com a bola no pé", adiantando que Gonçalo Ramos "tem faro de golo", que Neres e Guedes têm "potencial para fazer a diferença."
Dia de desforra e um golo que não foi eterno
Álvaro Magalhães não se importava que os miúdos hoje tivessem estudado a lição de 1983: "Foi o maior amargo de boca da carreira porque tínhamos condições para ganhar e mudar a história. Quando entrávamos em campo tínhamos a convicção de que podíamos entrar e arrumar com o jogo. Bem, os jogadores podem ter aproveitado a pandemia para ver alguns jogos e admirado os mais velhos [risos]. Mas a maioria nem era nascida. Oxalá que pensem nisso, que demonstrem que somos portugueses e do Benfica. O mais difícil era chegar aos oitavos de final. É importante oferecer a vitória aos emigrantes".
Shéu está "esperançado que os jogadores interpretem a história da melhor forma" e, mesmo tendo marcado um golo na Luz, nessa final, não o ressalva: "É uma sensação contraditória. Era uma jogada perigosa porque ia o Chalana na esquerda e ele, em 99 vezes, passava pelos adversários cem vezes. Três cabeças pensaram naquela jogada. Foi uma bonita construção, mas não dando a vitória claro que não pode ser um momento eterno. Há momentos mais exaltantes, mas o global é o mais importante. O meu grande golo foi ter pertencido ao Benfica e todos os dias rego a planta para que esta possa crescer. Quem chega ao clube, mesmo vindo de Barcelona ou Real Madrid, tem de perceber a nossa dimensão."
Fantasma de Bella Guttman longe da mente
Após duas vitórias na Taça dos Campeões Europeus, surgiu a profecia de Bella Guttman que, afinal, para os jogadores não pesa nas finais. "Já se falava disso em 1983. Não nos dizia nada", afirmou Shéu. "O Guttman disse que o Benfica sem estátua e com bons carros não ia ser campeão europeu. Mas podem parar com essas coisas. A estátua já está dentro do estádio", atalha, entre risos, Álvaro Magalhães.
A UEFA DE 83
Chocolate em Sevilha deu motivação
Na primeira ronda da UEFA de 1982/83, a exibição em Espanha fez sonhar. "Fomos ganhar ao Bétis. Vencemos por 2-1, podemos dizer que demos "chocolate". Isso deu motivação", afirmou Álvaro Magalhães. Seguiram-se vitórias tranquilas (2-0 e 2-1) com o Lokeren.
Roma de campeões aumentou a fé
Após arrumar o Zurique, o Benfica defrontou a Roma nos "quartos". Ganhou 2-1 fora e empatou em casa 1-1. "Foi um jogo mais difícil na Luz que em Roma. Só uma equipa concentrada é que empataria na Luz. Pensámos: quem passa a Roma, cheia de campeões do Mundo... vai longe", disse Magalhães, agradecendo a Humberto Coelho ter conseguido uma expulsão nos italianos.
Eriksson contente após o roubo de peixe
"Empatámos em casa contra o Universidade Craiova. Não marcámos. Ficámos desiludidos. O Eriksson chegou e disse-nos que era um grande resultado, que o importante era não sofrer em casa", explica Álvaro. Shéu recorda uma meia-final agitada: "Não nos deixaram dormir. Foram para o hotel fazer barulho. O Benfica levava peixe e carne para confecionar as refeições no hotel. Roubaram-nos o peixe em Craiova". O Benfica empatou 1-1 fora e passou pelos golos fora. "O Bento partiu o nariz três dias antes, chegou à Roménia e tirou a placa de gesso. Fez um jogo... "Meu Deus do céu", lembra Magalhães.
Génio de Vercauteren em golos evitáveis
"Sabíamos que a final seria muito difícil, mas lá é que foi o problema. Tínhamos de marcar", diz Shéu sobre o jogo de Bruxelas (1-0). Na Luz, o Benfica adiantou-se e o Anderlecht empatou. "Não achámos que o jogo estava acabado, não desistimos porque sabíamos da nossa valia, mas ficou muito difícil", acrescenta. "Na Luz o golo é consentido. A bola quase está fora e o Vercauteren, num passe longo, isola o colega. Era evitável", recua Álvaro.
BREVES
Derrota nos penáltis em 1987/88 marcou
O Benfica perdeu a final da Taça UEFA de 1983 com o Anderlecht, mas arredou-o da Taça dos Campeões Europeus nos "quartos" em 1987/88. Todavia, perdeu a final com o PSV. "Tivemos uma grande oportunidade e um azar tremendo. Só sofremos um golo nessa campanha. E perdemos nos penáltis. Treinámo-los de manhã. O Veloso falhou... tinha feito um grande jogo", disse Álvaro Magalhães.
Shéu valoriza a força de florentino na engrenagem
Shéu foi secretário técnico do Benfica de 1989 a 2018 e conhece bem vários atletas do plantel. Admite que Florentino é o que mais se assemelha ao Shéu jogador: "Faz um trabalho com valia, tem sido crucial. É fundamental na engrenagem." Álvaro reagiu: "O Florentino joga bem, mas o Shéu pensava o jogo de uma forma... os jogadores tinham de ser inteligentes para o perceber."