Longe de Kharkiv, Veronika celebrou os nove anos em terra estranha
Corpo do artigo
Bolo, pizza, sumo e balões coloridos foi a forma como Iana e Vitaly assinalaram os nove anos da filha, Veronika, naquele que é hoje o seu refúgio no centro da Ucrânia, em fuga dos bombardeamentos violentos em Kharkiv.
Na sala transformada em quarto ainda estão os balões da festa de 24 de março. "Foi bom, ela gostou", diz Iana, 37 anos, com sorriso de mãe. Veronika parece contente, apesar de envergonhada com as perguntas. "Quero voltar para casa", responde, tímida, de vivos olhos azuis.
É um apartamento pequeno com duas divisões, num prédio soviético em Dnipro, no centro da Ucrânia. As paredes e as escadas de acesso estão pintadas com o azul da bandeira ucraniana, as janelas das zonas comuns estão seladas com madeira, mas, dentro de portas, o interior alcatifado oferece algum conforto.
"No abrigo onde estivemos duas semanas, passámos muito frio no final. Frio e fome", diz Iuri Shchevchenko, 45 anos, amigo de Iana e Vitaly, com quem partilha a casa.
As duas famílias fugiram de Kharkiv (leste) "quando já não se conseguia suportar as bombas" e hoje vivrm na mesma casa, cedida por quem não conhecem, numa rede de solidariedade que contagia toda a Ucrânia.
"Trazem comida, roupa, tudo. Nunca nos pediram dinheiro", diz, entre lágrimas Iulia Shevchenko, 38 anos, mulher de Iuri, gestor de um supermercado arrasado pelos bombardeamentos.
Veronika tem como grande amigo Zagar, filho de Iulia e Iuri. "Eles conheceram-se no jardim de infância. Agora estão em escolas diferentes, mas as duas famílias ficaram amigas por causa disso", diz Iulia.
Iuri recorda os primeiros momentos da invasão. "No dia 23 estávamos a comemorar um feriado e no dia 24 dormimos no abrigo, num parque de estacionamento. Nos primeiros dias não houve problemas, havia água, eletricidade e aquecimento, os miúdos brincavam, faziam novos amigos. Enfim, era o possível".
Mas depois, a situação agravou-se. "Havia pouca comida, acabou o aquecimento e a eletricidade. Havia grandes explosões, nós percebemos o que se passava e ficámos com medo", explica Iulia.
A fuga trouxe-os a Dnipro há duas semanas. Hoje, os dois miúdos já têm aulas 'online' com os seus professores de sempre. "Toda a gente fugiu de Kharkiv e os professores tentam dar ajuda 'online' às crianças para que não percam mais aulas", refere Iulia. Entretanto, os adultos da casa vão "tentando viver o dia-a-dia" e "ajudar quem chega agora de novo".
A avó de Veronika ficou numa zona ocupada pelos russos, tem 91 anos e não consegue sair. "O grande problema é o dinheiro. Ela recebe a pensão na conta, mas os cartões [multibanco] não funcionam e ela não consegue comprar comida ou medicamentos", diz Iana, que costuma falar com a mãe pelo telefone.
"Não há internet, a televisão ucraniana está desligada, mas ainda conseguimos comprar-lhe coisas e enviar por amigos ou por serviço postal, pela Rússia. Ela está bem, mas está a passar muito frio porque não há aquecimento", explica.
Mais calado, o pai de Veronika enerva-se quando questionado sobre se a cidade de Kharkiv, a 50 quilómetros da fronteira russa, deve pertencer à Rússia, como defende o Presidente Vladimir Putin. "Não! Nunca!", responde Vitaly.
E mostra-se confiante nos sinais de reconquista de que começou ler nas notícias ucranianas. "As nossas tropas estão a dar luta e estão a reconquistar. Vamos dar a volta a isto e nós vamos voltar para casa", diz, enquanto olha para Iuri, como que a procurar a sua concordância.
Enquanto os pais falam, os agora melhores amigos Veronika e Zagar sussurram entre si. Zagar, com o que já sabe de inglês, consegue traduzir um pouco do que os adultos conversam. Ela sorri, mas continua calada, talvez na esperança de que a conversa acabe depressa.
14719257