Não é uma perda de tempo: o incrível relato do escritor infetado que sentiu a morte chegar
Os relatos de quem sofre com o novo coronavírus sucedem-se. Médicos, enfermeiros, bombeiros, auxiliares e, claro, as vítimas contam o que sofrem com a terrível doença. Esta história, na primeira pessoa, é de Ernesto Mallo, escritor argentino
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É um texto extenso que acaba com críticas ao capitalismo, que aponta o dedo ao turismo e que lamenta a liderança de alguns políticos - é fácil saber quem são -, mas o que impressiona neste relato é o diário do tempo passado num hospital de Barcelona.
Quem conta é Ernesto Mallo, autor de livros policiais, argentino que vive em Barcelona. Onde adoeceu e foi internado, temendo ali estar a viver os últimos dias de vida. "Quando se olha para o abismo, o abismo olha para dentro de nós. Quando entramos num hospital, o hospital entra em nós", começou por escrever num artigo publicado no diário argentino, Clarín.
"Esse ser microscópico que entrou no teu corpo para transformar as tuas células, torná-las suas escravas e replicar a sua descendência até não restar nada original de ti. O teu corpo é agora o campo de batalha de duas forças de ocupação antagónicas: os medicamentos e o vírus", lê-se antes do primeiro pedaço de diário.
"No segundo dia do meu internamento, a tensão arterial desceu. Sim, eu disse a mim próprio na altura, isto é a morte"
"No segundo dia do meu internamento, a tensão arterial desceu. Sim, eu disse a mim próprio na altura, isto é a morte. O meu corpo tornou-se uma matéria macia, absolutamente relaxada, que se afundava sem qualquer resistência no colchão e no abismo. Ernesto Mallo, ele estava a morrer. Em torno desse pensamento havia um sentimento de paz, um sentimento de realização. Ter ultrapassado a barreira dos setenta já é mérito suficiente para um filho desta época", descreveu.
"Tive seis filhos, escrevi dez livros, plantei quinhentas árvores. Eu nunca acreditei em Deus, nunca precisei Dele, nunca Lhe pedi nada. Quando a minha mãe estava a morrer, enviaram-lhe um padre.'Senhor', disse ele, tenho muito pouco tempo e não vou desperdiçá-lo a ouvir as suas parvoíces. Que grande lição foi essa. Cheguei até aqui, não me parece que tenha feito tão mal", desabafou, continuando a falar da morte que espreitava. "Num equilíbrio tão apertado, estava pronto a passar para o outro lado, sem vergonha nem censura. Mas depois as forças da ciência começaram a ganhar o jogo."
"Tive seis filhos, escrevi dez livros, plantei quinhentas árvores. Eu nunca acreditei em Deus, nunca precisei Dele, nunca Lhe pedi nada. Quando a minha mãe estava a morrer, enviaram-lhe um padre"
Crítico do que se transformou a modernidade, confessa em "voz alta" que mudou, em parte, o que pensava. Por amor. "Pela primeira vez, vejo o telemóvel como uma bênção. Através dele vem a voz da minha amada, a minha mulher. Através dele posso expressar-lhe o quanto a amo, o quanto preciso dela, precisamos um do outro", pode ler-se.
Sobre o que sentiu no corpo, Mallo fala dos primeiros momentos no hospital: "Olham para ti, verificam-te, verificam a tua ficha médica, e ficas. Põem-nos a tomar antibióticos e medicamentos anti-malária para cavalos e sentimo-nos cada dia pior. Perde-se o olfato e o apetite. A alimentação hospitalar não ajuda, parece que estiveram na Escola de Gastronomia de Auschwitz", desabafou antes de falar de capitalismo, turismo, neoliberalismo e falta de liderança mundial.
Artigo completo aqui, em espanhol