EM FOCO >> Sem competições, são várias as áreas dependentes que ficam afetadas: das apostas aos "stewards", passando por olheiros, fornecedores de estatísticas e até de catering
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Os efeitos da paragem competitiva já se sentem no bolso dos que vivem de tarefas associadas ao desporto, mas, à margem dessa microeconomia, há aflições maiores que podem até ditar falências.
Olheiros: vídeo ganhou terreno, mas campeonatos regionais ficam "invisíveis"
Ainda não perdeu o emprego, nem sequer lhe falaram em cortes de ordenado, mas sabe que esse oásis pode virar miragem a qualquer instante se a interrupção competitiva se prolongar por muito mais tempo. Trabalha numa empresa ligada a apostas desportivas, viu-se nas últimas semanas um inesperado especialista em futebol da Nicarágua e Bielorrússia, dois campeonatos que se mantiveram sem paragens e permitiram manter aceso o bichinho dos apostadores, embora o volume dessas apostas seja modesto.
É também modesto o retorno conseguido com a alternativa dos casinos online, entretanto promovidos para compensar a ausência de desporto real que suporte o negócio das apostas. "Isto só normaliza quando pelo menos um dos grandes campeonatos voltar ao ativo", diz a O JOGO, desculpando-se com o facto de o ter de fazer sob anonimato, porque a empresa sugeriu reserva quando há uns tempos começaram a ser bombardeados com perguntas sobre o futuro. Aposta as fichas no futebol alemão, ironicamente um dos primeiros a verbalizar sem paninhos quentes a ideia de que o coronavírus projetou para o desporto um dominó de falências.
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Há clubes que vão cair que nem tordos, avisou Fritz Keller, presidente da Federação Alemã de Futebol. "Não acho que o panorama do futebol vá ser o mesmo. Mais clubes serão forçados a declarar falência", avisou. Talvez por isso os alemães procurem queimar etapas: foram dos primeiros a retomar treinos, mas o fantasma mantém-se.
É melhor recuarmos um pouco para ver melhor as coisas. Literalmente. Imaginemos o desporto como arte, e que o futebol é apenas um dos quadros em exposição. O que diz Fritz Keller equivale a termos o nariz colado à pintura: dá para ver uma parte, mas não se tem a perceção do todo. Um apreciador de arte não dispensa a distância - à medida que nos vamos afastando desse quadro genérico da exposição a que chamamos futebol, percebemos que nele cabem múltiplas camadas em risco. Umas mais óbvias do que outras. Há clubes com futuro incerto, jogadores em causa, funcionários desses clubes que até já sofrem com o "lay-off", mas à volta desse núcleo central óbvio gravitam outras áreas que começam a sentir o efeito dos estilhaços.
Os lados bom e mau nos serviços de scouting
Pedro Vital está ligado à TalentSpy, empresa que faz parte do universo F3M, habituada a fornecer serviços a clubes e a quem faça scouting em regime freelancer. No fundo é uma plataforma que fornece um software capaz de disponibilizar uma base de dados completa sobre jogadores. Interessa menos o que é e mais o que vai ser daqui em diante.
"Ainda ninguém sabe ao certo o que vai acontecer", resume a O JOGO, ciente de que, no universo geral da empresa-mãe, há cerca de 100 postos de trabalho em Braga, quase duas dezenas em Lisboa e ainda sucursais em Angola e Moçambique. Os contratos com os clubes que assinam o serviço costumam ser anuais, e desses ainda não há grandes diferenças a registar, mas muitos dos freelancer investem apenas na assinatura mensal, e aí começam os primeiros sinais do que pode acontecer.
Catering: colaboradores em jogos no Dragão recebiam 25€ por encontro
"Curiosamente, registamos um fenómeno interessante, talvez motivado pelo confinamento obrigatório. Tem havido um aumento de utilizadores que têm contacto com a plataforma pela primeira vez, com dúvidas e a manifestar interesse", conta Pedro Vital. Podia ser bom, claro, não fosse um detalhe a devolver um pouco de realismo: há uma oferta de 30 dias para primeiros utilizadores, que, esgotado esse tempo, o mais provável será desistirem. Diferente no que oferece, o portal "Transfermarkt" está também muito dependente da competição.
"Mais futebol equivale a mais dados e estatísticas", sublinha a O JOGO Marcel Almeida, português que trabalha na Alemanha para o portal. "Felizmente, até agora não fomos afetados. A única diferença foi termos passado a trabalhar em casa. Os contratos e os conteúdos não foram para já afetados. Mas, se o futebol continuar parado, mais difícil será. Vivemos disso e das estatísticas que temos na nossa grande base de dados", remata.
Ligas marginais serão mais afetadas
Ainda na subcamada específica dos serviços de scouting, nem tudo se afigura mau. As designadas "videobserver", empresas que fornecem aos clubes e ou empresários serviços completos de detalhes sobre jogadores podem até sair beneficiadas. Com as restrições de observação direta limitadas, nos jogos à porta fechada, esses registos (quanto mais atualizados, melhor) podem ganhar um interesse acrescido. Mais difícil poderá ser a vida de um "olheiro" à moda antiga: há muitos, sobretudo a nível regional, que não estão ligados contratualmente às estruturas de clubes ou empresários, e que ganham à peça, se assim se pode dizer.
Sem jogos, ficaram sem parte nuclear do trabalho. E há a consequente ameaça de ficarem sem rendimento também, porque parte das avenças dependem dessa atividade presencial, e um regresso condicionado do futebol não lhes dará acesso direto ao recinto.
22, 27 ou 33 euros por jogo: é o valor que, em média, um steward normal embolsa, dependendo do grau de risco
Houve, ainda assim, quem tenha conseguido contornar a situação. Um dos "olheiros" portugueses ligado a um grande clube europeu, porque tem contrato, e sob a reserva de confidencialidade a que está sujeito, explicou não ter sofrido cortes e garantiu a O JOGO que o volume de trabalho até aumentou: os relatórios são agora feitos exclusivamente a partir de vídeos e, competindo-lhe a ele o mercado português, o departamento em que está inserido pediu aos colaboradores que trocassem campeonatos, ou seja, que passassem a analisar vídeos de outras latitudes, para que os relatórios sobre jogadores tivessem perspetivas diferentes. E discutem-nas por videoconferência, através do Zoom. "Trabalho não falta, mas ninguém sabe o futuro", resume.
Já Miguelito, ex-jogador e hoje scout ligado à empresa Proeleven, acrescenta que a curto prazo o trabalho não é afetado, reafirma a importância dos registos em vídeo, mas deixa um alerta: "Os campeonatos mais pequenos e menos mediáticos, onde esses registos não existem, podem ser afetados se isto se prolongar". Nuno Ventura, da ACR Soccer, manifesta também a O JOGO preocupação pelo impacto na rede regional de contactos, sobretudo os que desenvolvem a atividade em part-time, e que fica afetada com a paragem e restrições incontornáveis.
Empresas de apostas e as que fornecem estatísticas ou têm plataformas associadas ao futebol estão a reinventar-se para fintar a crise
E os "stewards", como é que ficam?
Mesmo num cenário otimista do regresso das competições em breve, é certo que vamos ter de nos habituar a recintos vazios. Isso implicará uma redução substancial no número de Assistentes de Recintos Desportivos (ARD), os "stewards", a maior parte deles em regime de part-time, que viam nessa tarefa um bom complemento mensal do ordenado. José Xavier é um deles.
Trabalha na área da saúde e tinha na tarefa de vigilância associada ao desporto "uma parte dos rendimentos". A tabela pode variar um pouco em função dos recintos, mas não foge muito a isto: um "steward" sem funções de coordenação ganha, em média, 22, 27 ou 33 euros por jogo, dependendo do grau de risco. Um coordenador pode chegar aos 50 euros, e pode dar-se o caso de ter num só dia a hipótese de cobrir três jogos, entre campos e pavilhões - um de manhã, outro à tarde e ainda um à noite.
"É só fazer as contas para se perceber o impacto disso ao fim do mês", lembra Xavier a O JOGO. "Um fim de semana podia render entre 150 a 170 euros, para muitos era um complemento importante a salários baixos". Com ou sem competição, a crise está aí. Com diferentes escalas.
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Dieta: nem os serviços de catering escapam à crise
A "matrioska" de afetados por dependência das competições é abrangente. Nem o catering escapa. É um serviço opcional, não afetará em proporção idêntica, mas não deixa de ser relevante. Um clube como o FC Porto, que é líder do campeonato, implica um serviço com recurso a cerca de 200 colaboradores - e os de tarefas simples, subcontratados a empresas de trabalho temporário, embolsavam 25 euros por jogo. Um serviço idêntico a um emblema como o Aves, que é último na tabela, mexerá com meia dúzia de pessoas. E mesmo que o futebol regresse, com camarotes encerrados e só as tribunas presidenciais abertas, sujeitas a número limite, esse catering tenderá a ser dispensável. E quem diz catering, diz hospedeiras etc, etc. Desporto e economia - nalguns casos, microeconomia de rendimentos - aparecem intimamente entrelaçados.