Paula Guerra aceitou o desafio de analisar o fenómeno do futebol sob a perspetiva sociológica e ofereceu-nos uma viagem no tempo, desde o sebastianismo até ao presente de um Portugal povoado por novos ícones.
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Qual é papel do futebol na sociedade?
A competição entra muito bem na sociedade e é também uma maneira de praticar exercício. Há outros fatores: o estrelato, as celebridades, as questões económicas e tudo o que se gera em torno do futebol. Na sociedade portuguesa, na espanhola ou italiana, o facto de os jogadores serem celebridades é uma forma de identidade, que no caso português vem desde o sebastianismo, e isso é levado ao extremo no futebol. O futebol tem um peso económico, social, cultural e simbólico imenso na nossa sociedade.
Porquê essa quimera por D. Sebastião?
Toda a gente espera por alguém que lhes dê algo melhor, é a busca de uma realização através desse tipo de imagem. Tivemos pessoas que corporizaram muito essa imagem: Amália, Zeca Afonso, Eusébio, Cristiano Ronaldo são entendidos com uma aura e uma perspetiva simbólica de muito investimento por parte dos portugueses.
O futebol é propício a idealizações?
É uma forma de as pessoas verem o ideal delas próprias a projetar-se, e quem diz futebol, diz o festival da canção: ganhámos, pela primeira vez, com uma votação expressiva, em contraste com as participações modestas do passado em que havia a sensação de que seríamos postos de lado. A vitória no Europeu de futebol foi a concretização de algo, a vitória de uma Nação. Andávamos sempre à procura, com um longo historial de derrotas.
Esses marcos sararam feridas?
As coisas não têm um efeito tão rápido. Já temos um Portugal diferente, aberto ao mundo e já não tanto sob a influência da inferiorização. Isto é um processo, uma evolução paulatina. Há de facto uma mudança social, muito acelerada, recente. Essa nova forma de estar tem muito a ver com o facto de nos sentirmos ao mesmo nível, há agora muitos emigrantes em empregos qualificados, são pessoas que sabem falar línguas, cultas, intelectualmente ativas e isso tudo acelera a mudança. Não desconsiderando o impacto do futebol, e do Cristiano Ronaldo: ele já é um ídolo que transcende o país e é a primeira estrela lusa verdadeiramente global e cosmopolita, representando ainda a moda, a questão lúdica, o "star system".
Se o impacto do futebol é positivo, como se explicam os incidentes?
Há um momento de catarse que faz parte do ritual de uma lógica de libertação, de pugnar pela sua equipa.
Catarse que, às vezes, conduz à violência ...
É reflexo da competição exacerbada, dos valores pugnados pela sociedade, por aquilo que defendemos no todo. Vivemos numa sociedade capitalista avançada, a cultura do individualismo, da meritocracia, a procura do lucro, a ênfase dada ao económico. Os incidentes que se verificam no futebol são sintomas do estado em que se encontra a sociedade. É erróneo dizer-se que o futebol é uma selva. O futebol é o que é a sociedade, sendo uma parte importante dela, logo o que vai estar em cena será o que está em jogo na própria sociedade: a agressividade, a violência, sobretudo a simbólica, a dominação económica e masculina.