Da distrital em Portugal ao campeão da Libertadores: "Ninguém o quis na Liga 3"
Kevin Serna jogou no Perafita e Serzedo, relançou-se no Paraguai e explodiu no Peru. Acabado de chegar ao Rio, já brilha pelo Fluminense e até abre a porta na seleção da Colômbia
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O que é improvável nem sempre é uma missão impossível. Que o diga Kevin Serna, extremo de 26 anos, colombiano de Popayan, sem carreira conhecida até há poucos anos, conseguindo, agora, protagonizar transferência de dois milhões de euros do Alianza de Lima para o Fluminense, premiado por golos e assistências no clube peruano e por momentos bem açucarados na Libertadores frente ao emblema do Rio que acaba de o contratar.
Mauro Bousquet trouxe Serna para Portugal, entre outros colombianos, e fê-lo jogar no Perafita e Serzedo
Na estreia brilhou com assistência no triunfo sobre o Palmeiras. Mas o mais curioso é que Serna se cruza com Portugal da forma mais subtil, desencontrada de grandes palcos, tudo pelo contrário, atuando na distrital do Porto, no Perafita e Serzedo. Fez parte de uma academia gerida por uma parceria de empresários que montou centro de operações no Algarve e, depois, no Porto. Vários jovens colombianos, brasileiros e japoneses foram colocados a rodar. Entre eles, o extremo em questão, que era um dez puro, de qualidade acima da média, mas muito franzino.
Mauro Bousquet, empresário que trouxe Serna para Portugal em 2019, explica a academia que montou e as breves passagens do colombiano por Perafita e Serzedo, nos sintéticos dos distritais da AF Porto.
Serna deu conta do seu talento, viu a montra em jogos contra academias reputadas, como Braga e FC Porto, mas nunca impressionou olheiros de clubes acima. Acaba por deixar Portugal, tomando como rota o Paraguai e do Sportivo Luqueño chegou ao Chankas e, mais tarde, ao Alianza de Lima. A gestão destas viagens, desta procura de um lugar ao sol, pertenceu ao italiano Mauro Bousquet, italiano residente no Porto mas sempre em trânsito entre Colômbia e Brasil, falando o agente com O JOGO sobre o fenómeno Serna, de quem muito esperam os adeptos do Fluminense numa época que vai tendo uma classificação ruinosa no Brasileirão.
Atípico: cá não passou da Distrital, agora joga por campeão da Libertadores
Já sinalizado para vestir a camisola cafetera, o extremo chega ao Rio muito amparado pela projeção ganha na Libertadores contra o Flu, marcando no Peru e Brasil. A vida de Serna explica-se pelo investimento em carreiras de Mauro Bousquet, responsável de uma academia muito particular sedeada em Cali. Amigo do falecido Rincón, também de Miguel Guerrero e Harold Lozano, figuras colombianos dos noventas. “A base de tudo é uma academia que tenho com outros sócios, que se chama Benport, exatamente por culpa de Benfica (“Ben”) e FC Porto (“port”). Tínhamos vários jogadores a desenvolver e entrámos na SAD do Quarteirense. Um deles foi o Angel Torres, que chegou à formação do FC Porto. Temos várias histórias. Ao fim de dois anos no Quarteirense viemos para o norte tentar outras parcerias. O Perafita não deu certo, as pessoas em redor do FC Porto resistem mais ao que vem de fora”, relata Mauro, já então com um talento colombiano especial em mãos: Serna. Marca três golos na estreia pelo Perafita, ao AC Milheirós.
Exemplar: Bousquet explica o processo de uma academia de Cali e das parcerias em Portugal
“Conseguimos trazer 10 jogadores que estavam connosco na Quarteira para cá, juntar outro lote. Comprei equipamentos, tratei de casas, mas sentiram que eu estava a mandar, porque metia o dinheiro. De um dia para o outro ninguém mais se apresentou, eu fiquei com uma casa na Senhora da Hora, com 14 quartos e 30 jogadores sem sítio onde treinar. Serna entre eles”, relembra, tocando na entrada em cena do diamante do Flu.
“Eu falei com o meu treinador, Patrick Oliveira, que tinha estado nas categorias de base do Flamengo, sobre o passo a dar nessa incerteza. Fomos ao campo mais perto, Senhora da Hora, e fomos alugando todos os dias da semana de manhã. Pelas 9h00, com 30 jogadores a trabalhar. Fomos criando um nível superior. Serna era um dos expoentes Fizeram-se jogos contra o Servette, Braga sub-23, FC Porto sub-19, com Angel Torres e Fábio Silva”, recorda.
Pandemia levou Serna
Mauro puxa pelas credenciais do projeto. “Estávamos a desenvolver o potencial dos jogadores, fazendo tudo como os clubes profissionais: comida adequada, horários de descanso, tutor para que eles cumprissem normas. Tínhamos aí talentos portugueses, sul-americanos e japoneses, um deles na Super Liga da Índia. Não é só o Serna que chegou alto. Foi um investimento meu, do meu sócio colombiano Yober Candelo e um advogado do Porto, Paulo Topa. Fomos bancando o futuro dos miúdos, mas a dado momento vimos que era insuficiente estarem só a treinar”, vinca, espremendo a alavanca dada ao garoto de Popayan, agora às ordens de Mano Menezes.
“Serna treinava na Senhora da Hora na academia que aí tínhamos. Treinar era insuficiente, acabou por ir para o Perafita e depois o Serzedo”
“Depois deu-se a ligação com o Serzedo, onde conseguimos inscrever cinco jogadores. Um deles Serna. O presidente era muito simpático, nós assumimos as inscrições e eles continuavam a dormir em nossa casa. Mas tudo foi interrompido pela pandemia. Face ao que se sucedeu decidimos mandar Serna para o Paraguai, outros foram para a Malta e os outros seguiram para os seus países, porque foi impossível continuar com o trabalho”, sustenta, aflorando o enquadramento de Serna em Portugal, com quatro golos em nove jogos pelo Perafita, e dois em quatro pelo Serzedo, competindo na AF Porto. Decorria o ano de 2019. Bousquet rende-se aos atributos que já ferviam nas chuteiras do craque, embora sofrendo indiferença ou visão diminuta do potencial.
“O único que viu nele potencial acima da média foi Hugo Vieira, do Braga. Outros olhavam para ele como se fosse um qualquer”
“Serna dava a entender em todo o seu jogo que era completamente diferenciado. Isso percebia-se nos testes e jogos. O único que reconheceu algo acima da média foi o Hugo Vieira, coordenador da formação do Braga. Elogiou os nossos atletas quando fizemos o jogo com os sub-23 deles. Claro que era preciso ver mais, acompanhar e não foi possível ter essa continuidade. Mas todos os outros clubes olharam para Serna como se fosse um qualquer. Ninguém o quis na Liga 3, vi uma mentalidade complicada nos clubes inferiores”, acusa, enfatizando o distanciamento que se seguiu, mesmo vendo características que o distinguiam com autoridade. “A marca mais forte era a sua arrancada com muita força e dribles curtos em velocidade. Conseguia encontrar soluções em pequenos espaços e apresentava boa finalização. Sempre foi um atleta tranquilo e concentrado, mas também introspetivo e de poucas palavras.”