"Se não deixassem naturalizar tantos africanos, eu ia manter os recordes mais uns 50 anos"
António Pinto inventou um sistema para fazer grelhados a carvão e um quebra-nozes que não faz sujidade. No bricolage, ninguém o bate. Mas também no trabalho agrícola, a que dedica agora grande parte do seu tempo em Amarante, onde vive desde que deixou o atletismo. Tem 120 árvores de fruto, produz vinho para consumo interno. António Pinto, à beira de fazer 50 anos, ainda detém os recordes da Europa da maratona - que partilha com o francês Benoit Zwierzchlewski (02:06:36) - e de Portugal dos 5000 m, 10 000 m e maratona.
Corpo do artigo
Sentados no interior de uma pastelaria à beira do Tâmega, víamos passar, com frequência, do outro lado da porta envidraçada, grupos de pessoas a correr. "Aqui em Amarante há muita gente a fazer atletismo. Está na moda ir a trails e a corridas. Eu também tenho viciado muita gente aqui", comentou António Pinto. O antigo maratonista, natural de Vila Garcia, Amarante, pesa mais 18 quilos do que quando deixou a alta competição.
Ainda corre?
Já não o faço todos os dias, porque os joelhos já estão um bocado massacrados, mas tenho um grupo de corrida de malta da minha idade. Aqui no Norte, vamos às provas quase todas, de vez em quando até vamos ao estrangeiro. Agora, quero desfrutar do atletismo.
Em quanto tempo acha que faria agora uma maratona?
Se me preparasse mais ou menos, fazia em menos de três horas. Este ano, ainda estou a treinar muito pouco, estive um tempo parado, devido a problemas nos joelhos, engordei mais um bocadinho, e agora estou a recomeçar.
Quantos quilos tem a mais desde que deixou a alta competição?
À volta de 18 quilos. Pesava 60 quilos quando competia.
Quer perder peso?
Quem é gosta de estar cheio? Ninguém gosta [risos].
Já terminou a carreira há dez anos, mas ainda tem a melhor marca europeia da maratona e três recordes nacionais: 5000 m, 10 000 m e maratona...
Tive uma carreira longa, fiz atletismo até aos 39 anos de idade e fui recordista da Europa com 34 anos. Bati o recorde nacional de 5000 m em 1998, o de 10 000 m em 1999, e o da maratona em 2000. Dos 3000 m à maratona os recordes são todos meus. E vieram de Lopes, Leitão, Mamede.
O francês Benoit Zwierzchlewski já igualou a sua marca. Quando acha que o recorde europeu vai ser definitivamente batido?
Se não deixassem naturalizar tantos atletas africanos, eu ia manter os recordes, se calhar, mais uns 50 ou 100 anos. No caso dos recordes de Portugal, acho que vão mesmo durar 100 anos. Não vejo atletas a aparecer, eu tenho 27.12,47 aos 10 000 m, eles fazem 29.00. Nos 5000 metros, fazem quase 14 minutos, eu tenho 13.02,86. Para quem percebe de atletismo, é muita diferença. À meia maratona fazem 1:04 ou 1:05 horas. As coisas não estão a evoluir, a qualidade está a baixar. Eu fiz 00:59 há quase 20 anos.
Não tem havido uma renovação de talentos?
Nem em Portugal nem na Europa. Apareceu o Mo Farah (campeão olímpico e mundial dos 5000 m e 10 000 m), que corre pela Grã-Bretanha, mas é de origem africana. Ele tem capacidade para bater o recorde da Europa da maratona, já fez 2:08 horas, mas a idade também já começa a pesar e acho que, este ano, não vai fazer a maratona. Em relação a atletas brancos, não estou a ver, de imediato, ninguém capaz de correr para recorde.
A sua carreira ficará para sempre associada à Maratona de Londres, onde bateu o recorde da Europa e venceu três vezes.
Bati o recorde em 2000, num ano olímpico, em que a minha atenção estava toda virada para os Jogos Olímpicos e não para a Maratona de Londres. Fiz uma preparação tranquila, sem muitas preocupações, só naquela de justificar o cachet que ia lá ganhar. Já tinha ganho em Londres duas vezes e pagavam-me muito dinheiro para estar presente. Quando se está despreocupado, é quando as coisas correm melhor. Aconteceu tudo ao contrário: ganhei com muita facilidade e com recorde da Europa. E depois, nos Jogos Olímpicos, não andei [terminou em 11.º, com 2:15.17 horas].
Fez mal os cálculos em relação à calendarização do seu pico de forma ao longo dessa época?
Não foi mal calculado, às vezes as coisas surgem quando menos esperamos. Eu estava descontraído, sem muita pressão. Nos Jogos Olímpicos, uma maratona é muito ingrata, os melhores maratonistas dificilmente fazem um brilharete.
Disse há pouco que lhe pagavam muito para estar em Londres. Qual era o cachet?
Era muito... Eu era um atleta branco e dava espetáculo! Londres tem muito dinheiro, os melhores do mundo estão lá todos e é muito competitiva. E eu sempre trabalhei para as minhas marcas, nunca andei atrás, tomava a iniciativa. Em Estocolmo, quando bati o recorde europeu dos 10 000 m, puxei volta a volta. O Fernando Mamede, quando bateu o recorde do mundo, foi o Carlos Lopes que fez a papinha toda. Mesmo em Zurique, quando bati o recorde nacional dos 5000 m, fiquei com a segunda melhor marca de sempre a nível europeu, meti-me no meio dos africanos, são andamentos completamente diferentes, é como pegar num carro de Rali ou de Fórmula 1.
A sua carreira deveu-se mais a talento ou a trabalho?
Sem ovos não se faz omeletes, mas sem trabalho também não se consegue nada. A diferença é que antigamente tinham de nos pôr um travão para não treinarmos tanto. Agora, têm de se chicotear os atletas para irem treinar. A diferença é essa. Na minha altura, o nível competitivo em Portugal era muito elevado.
Financeiramente, ainda vive do atletismo?
Tudo o que tenho devo ao atletismo.
As participações na Maratona de Londres permitiram-lhe enriquecer?
Não sou rico [risos], mas foi na maratona inglesa que ganhei mais dinheiro. Se não fosse o atletismo, não podia ter o privilégio de ter a vida que tenho. Mas também tem de se ter cabeça.
Calculo, então, que tem tido cabeça para viver tranquilamente dos rendimentos.
Sim. Procuro fazer uma boa gestão, ainda que haja coisas que só se aprendem com os erros. Fiz os investimentos mais ou menos certos, embora os banqueiros me tenham desfalcado. Fui um dos clientes do BES que perderam dinheiro e o processo está em tribunal.
Como tem ocupado o tempo desde que deixou o atletismo?
Tenho feito muita coisa. Fui para a faculdade estudar Educação Física, mas o curso anda agora meio parado. Quem não tem as bases sente muitas dificuldades. Estudei até ao sexto ano, depois tive de ir trabalhar até me dedicar totalmente ao atletismo. Estou também ligado à agricultura, faço tudo na pequena quinta que tenho aqui, em Amarante. Tirei inclusive um curso de poda. Sou um bocado polivalente: bricolage, eletricidade, carpintaria, trabalho de pedreiro... faço tudo. Também dou apoio ao meu filho e falo aos miúdos sobre atletismo.
Não recebe nenhum subsídio do Estado?
Não. Isso é uma coisa que está mal: há antigos atletas que estão a receber e outros não.
Porquê?
É o critério dos chorões, quem não chora não mama.
Suponho que existam critérios...
É chorar... Nunca definiram critérios até hoje. Não estou a dizer que quem está a receber não o mereça.
O António não costuma aparecer em eventos públicos. Há algum tempo que também não é falado na Comunicação Social. E, como se costuma dizer, quem não aparece esquece...
Eu e a Fernanda Ribeiro somos mais humildes e não andamos atrás de ninguém. As pessoas é que têm de reconhecer o nosso trabalho, eu apareço quando tenho de aparecer. Não tenho a lata que tem a Rosa ou a Aurora. Elas, se não são convidadas para algum evento, ligam para saber a razão de não terem sido convidadas. Acha que eu fazia isso? A Fernanda é do meu género, é a atleta portuguesa que tem o maior currículo, tanto como as outras todas juntas, e também não anda a aparecer. O Lopes tem mais medalhas, mas eu tenho mais marcas. Em termos mundiais, não há nenhum branco que tenha um currículo como o meu. Mas eu gosto de estar no meu cantinho, não me ponho à frente para me verem.
02:06.36
A 16 de abril de 2000, há quase 16 anos, António Pinto bateu o recorde da Europa da maratona ao cumprir a prova de Londres em 02:06.36 horas. Três anos depois, o belga Benoit Zwierzchlewski fez a mesma marca na Maratona de Paris. Desde então, mais nenhum europeu correu os 42,195 km em tempo igual ou inferior, ainda que o recorde do mundo esteja já nos 2:02.57 horas, feito, claro está, por atleta africano, o queniano Dennis Kipruto Kimetto.
SAIBA QUE
"A pior nota dele é 19", afirma António Pinto, orgulhoso do mais novo dos seus dois filhos. João, de 16 anos, é "muito bom aluno". Segundo o antigo maratonista, "brinca com a matemática" e reúne todas as condições para vir a tornar-se num economista de sucesso. "É o que ele quer estudar quando for para a faculdade", comenta António Pinto, referindo o importante papel que o atletismo tem na vida de estudante do filho. "Ele anda no futebol, mas gosta mais de correr. Poder sair para uma corrida ajuda-o muito a libertar-se da pressão dos estudos e a descansar a cabeça." Já a Vanessa, a filha de 24 anos, estudou Direito e está agora a tirar Turismo. "Não está a ser fácil ela arranjar emprego", lamentou Pinto.
(entrevista publicada na revista J de 14 de fevereiro de 2016)