Quando o tema do doping volta ao primeiro plano internacional, com o escândalo no atletismo russo, que o pode afastar das provas internacionais, incluindo os Jogos Olímpicos de 2016, conhecemos Rogério Jóia, o discreto sucessor de Luís Horta no cargo de presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADop). Há ano e meio no cargo, esta é a primeira entrevista em que se dá a conhecer.
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Desde que assumiu a presidência da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), em junho de 2014, Rogério Jóia deu apenas uma entrevista. Esta é a segunda e, ao mesmo tempo, a primeira em que despe o fato e a gravata [só não o conseguimos na sessão fotográfica] e fala, de forma emocionada, das saudades da Polícia Judiciária e da sua atividade como diretor de corridas de touros.
Anda sempre armado. Mesmo agora que já não exerce funções como inspetor da Polícia Judiciária (PJ). "Para mim é normal andar armado, mas as pessoas têm de entender que a arma não é para se usar. No dia em que se puxa dela, tem de se estar preparado para usá-la", comenta no seu gabinete no Centro de Medicina Desportiva, no Estádio Universitário, em Lisboa. Rogério Jóia estudou Direito e é Mestre em Medicina Legal e Ciências Forenses. Dá atualmente aulas na Universidade Técnica de Lisboa. Na PJ começou como inspetor no crime violento, assaltos à mão armada e capturas; passou depois pelo combate ao tráfico de estupefacientes e estava na investigação de crimes económicos quando se candidatou a presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), para substituir Luís Horta, que emigrou para o Brasil.
Sente a falta do trabalho no terreno como inspetor da PJ?
Muito. Sinto muito a falta da polícia. As experiências que se vivem na PJ são únicas. Para além de considerar que é a melhor casa do país, vivem-se na PJ momentos que não se vivem em mais lado nenhum momentos de perigo, de solidariedade, de amizade, de apego à vida. Quando cheguei à ADoP, uma funcionária comentava comigo que esta organização é de muita confidencialidade. E como eu lhe disse na altura, estou habituado a lidar com segredos de Estado. Hei de levar informação para a tumba relacionada com segredos de Estado. E esses foram obtidos na PJ.
Portanto, os seus amigos podem confiar em si para guardar um segredo.
[risos] Estive 19 ou 20 anos na PJ. Estou com 48 anos e aprendi de tudo na PJ: o que se deve e o que não se deve fazer. A PJ será sempre o meu amor.
Viveu muitas situações de risco?
Algumas. Às vezes fazemos coisas que nem devemos. Um dia fui jantar a um restaurante em Sete Rios. Tinha comigo um mandato de captura para um indivíduo com 12 anos de prisão para cumprir por homicídio. Sabia que ele costumava prostituir-se no Parque Eduardo VII. Era o que na polícia chamamos "arrebenta". Resolvi passar no parque Eduardo VII e, a descer a rua, vejo ali cerca de 12 indivíduos. Percebi que ele estava lá, preparei as algemas, a pistola e fiz o que fazem os normais clientes. »
Era suposto fazer isso sozinho?
Não. Mas nisto ou tem-se sangue ou não. Veio logo um jovem meter a cabeça dentro da janela do Golf branco, da PJ, para perguntar se eu queria algum serviço. Disse que sim, mas que gostava mais de negros e apontei para o tipo que queria capturar. Assim que o outro meteu a cabeça dentro do carro, apontei-lhe a pistola. Saí para fora, mandei os outros virarem a cara para a parede e estava a algemar o indivíduo quando ouço uma sirene. Dois colegas andavam também por ali, a trabalhar num caso. Um deles disse-me logo que não devia estar sozinho. Levei, depois, o rapaz à prisão e fui para casa. Fazia parte de uma brigada que trabalhava à moda antiga. Faço tudo à mão.
É um homem corajoso?
Nunca pensei em ser polícia, aquilo que queria ser, quando era novo, era matador de touros. Sou diretor de corridas, fui novilheiro amador. Diziam que tinha jeito. Uma vez perguntaram-me o que era preciso para se ser toureiro. E eu respondi: "Para se ser toureiro, é preciso nascer-se toureiro". Isto tem a ver com o que eu penso da vida. Só devemos estar nas coisas de forma envolvida. Não sei estar em nada de outra maneira. Hei de ser toureiro, como hei de ser polícia, a vida toda.
De onde veio esse seu gosto pelas touradas?
Sou de Idanha-a-Nova, da raia, que tem proximidade com Espanha. O meu bisavô foi forcado, foi um dos grandes lavradores da região. E foi ganadeiro.
Nunca quis ser forcado?
É diferente. Um matador de touros está sujeito a um maior perigo, pois toureia os touros com as hastes limpas; um forcado pega um touro que esteja embolado.
Porque não foi matador de touros como queria?
O meu pai não quis, ele nunca gostou de corridas de touros. E na verdade também não vou querer que um filho meu o seja. Aquilo é demasiado perigoso. Ainda o fiz às escondidas mas, depois, a vida levou-me por outros caminhos. E ainda bem. Olho para quem toureou comigo e vejo que a vida foi um pouco madrasta com eles.
A sua família era abastada?
Não. De classe média/baixa. O meu pai era bate-chapas e a minha mãe doméstica. A determinada altura senti outra vez o apelo do touro. O mundo do touro é um mundo de emoções. Sou um homem racional no meu trabalho, mas ao mesmo tempo muito emotivo. A única forma que tive de voltar às touradas foi tornar-me diretor de corridas, é o meu hobby.
O que faz um diretor de corridas?
É o representante do Estado na corrida e manda na corrida, desde o desembarque dos touros até final do evento. Antes da corrida, há uma série de coisas que as pessoas não veem: desembarque dos touros, inspeção, o loteamento, o sorteio... Determino, por exemplo, o tempo de lide, dou música ou não, dependendo do grau do cavaleiro, entre outras coisas.
Quantas corridas dirige por ano?
Umas 20. Já me satisfaz a afición. O mais bonito é o que está antes e depois da corrida. Hoje à noite, por exemplo, vou a Albufeira dirigir uma. E depois da corrida, toda a gente do mundo do touro reúne-se à mesa. A mesa é uma das tradições maiores da nossa cultura. Costumo dizer que posso falar com toda a gente, mas não me sento à mesa com toda a gente.
O que é preciso para uma pessoa poder ser diretor de corridas de touros?
Passar em exames da Inspeção Geral das Atividades Culturais, tem de ter conhecimentos na área e ser respeitado. As pessoas têm uma ideia errada relativamente a quem está no mundo do touro: pensam que somos selvagens, insensíveis e que não gostamos dos animais e isso não é, de todo, verdade. Eu vivo com dois cães: o Rafa e a Estrelinha e costumo dizer que os meus filhos são os meus cães. Trato-os como se fossem filhos.
Mas entende as pessoas que são contra as touradas?
Compreendo e respeito, como espero que respeitem a minha posição. O ganadeiro tem prejuízo a criar touros de lide. Cria-o porque gosta muito do touro. O ganadeiro não dorme na noite em que a vaca pare o vitelo, gosta de o ver crescer e tornar-se num animal robusto e bonito e gosta de o ver na praça bravo, porque, se assim for, vai morrer no campo sozinho e não no matadouro. Os touros, assim que saem da praça, são-lhe retirados os ferros e tratados. Uns vão para o matadouro, mas aqueles que são bravos, que têm casta e são nobres, vão morrer no campo. Sabe que os touros sofrem menos se morrerem na arena, como acontece em Espanha, do que se morrerem no matadouro?
Nunca quis ter touros?
Quis e espero vir a ter um dia, quando regressar a Idanha-a-Nova. Vou retornar às raízes para ser lavrador e ganadeiro.
Quando era mais novo e toureava, levou muitas marradas?
Sim. E uma delas muito forte, tive de ser operado à barriga. Fui apanhado num tentadeiro, onde só se tentam as vacas, para ver se são bravas e têm casta. São toureadas com hastes limpas, têm o que chamamos diamantes: vão tocando nas pedras, árvores, chão e aquilo vai afiando. São comos facas.
Não tinha medo?
É o sangue! Ou nasce-se toureiro ou não.
As touradas e a PJ, apesar de tudo, não fizeram de si um durão. Emociona-se facilmente.
Se fosse uma entrevista formal, não me teria emocionado. Mas falámos de questões que me são muito caras: a morte, a vida, os sentimentos, o medo, a angústia. A PJ dá uma capa de dureza muito grande, mas também dá uma perceção do verdadeiro valor da vida humana. Assim como o mundo dos touros: só um homem valente se põe na cara do touro. A questão da honra é muito importante. Não consigo deixar de lavar algumas maldades com aquilo que considero a água da honra, que é o sangue. Sou profundamente pacífico, mas nunca me esqueço de quem me faz mal e de quem me faz bem. Isto vem de miúdo.
Não gosta de dar entrevistas. Porque aceitou dar esta?
Porque considero que tudo na vida tem de ser temperado. Dei apenas uma entrevista há cerca de um ano, mas não quero que as pessoas achem que a ADoP se fecha sobre si própria.
CORNADAS, OBRAS E DIREITO
Com 14 anos de idade, Rogério Jóia já andava a levar marradas dos touros na zona raiana da Beira Interior. "É de novo que se começa", afirma o antigo capitão da equipa de futebol do Olivais e Moscavide. Aos 16 anos, o homem que já foi presidente da Associação dos Diretores de Corrida teve de começar a trabalhar, ao mesmo tempo que estudava, já em Lisboa. Trabalhou nas obras, na montagem de divisórias e tetos falsos, depois como comercial, até terminar o curso de Direito e começar a exercer.
SAIBA QUE
A ADoP vai lançar, no final deste ano ou início de 2016, um concurso em escolas secundárias ligadas às artes para a criação da mascote da ADoP. "Vai interagir com jovens e crianças", esclarece Rogério Jóia, prometendo para breve o anúncio de mais iniciativas relacionadas com a prevenção. Para além de fazer o controlo fisiológico, dentro e fora das competições, dos atletas que competem em Portugal, a ADoP trabalha também a nível internacional, estando, por exemplo, nesta altura, a trabalhar com a federação turca no sentido de perceber se uma atleta desse país estava efetivamente dopada quando venceu os 5000 metros no Mundial de Atletismo de Barcelona, em 2010. Se se confirmar, Sara Moreira pode vir a receber a medalha de prata e Jéssica Augusto a de bronze.
Número: 19
Foi sob a presidência de Rogério Jóia que foi criado o dia da ADoP, celebrado pela primeira vez este ano a 19 de junho. "Desafiámos a Agência Mundial Antidopagem (AMA) a criar o Dia Mundial Antidopagem e acreditamos que será criado", comenta o responsável máximo da ADoP, entidade que está sob a alçada do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ). "Apostamos na prevenção ligada à educação e não apenas na repressão. Queremos que o paradigma mude e que, desde que as crianças começam a fazer desporto, entendam claramente que o doping não é o caminho certo. Para isso há muito trabalho a fazer."
(entrevista publicada na revista J de 27 de setembro)