A propósito do filme Evereste, que ainda é possível ver nos cinemas, entrevista com João Garcia. O alpinista fala de si, do acidente que sofreu na montanha mais alta do mundo e dá a sua opinião sobre esta megaprodução cinematrográfica e os acontecimentos que estiveram na sua origem.
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Foi a pior expedição da sua vida, mas também a que mais lhe deu espaço mediático. O alpinista, atualmente com 48 anos, garante estar consciente de que só se tornou conhecido porque "aquilo correu mal", referindo-se à subida ao cume do Evereste, em 1999, na sequência da qual perdeu um amigo belga, parte do nariz e dos dedos das mãos. "Se não tivesse sofrido o acidente, tinham saído duas ou três notícias e ponto final. E não teria sido possível a um alpinista português ser profissional durante uns anos", afirma.
Ainda está nas salas de cinema portuguesas o filme Evereste, baseado no livro autobiográfico "Into Thin Air: A Personal Account of the Mt. Everest Disaster", do jornalista Jon Krakauer, em que este relata os acontecimentos do desastre que, em 1996, matou os experientes alpinistas Rob Hall e Scott Fischer, líderes de expedições pagas até ao topo da montanha mais alta do mundo (8848 metros). Trata-se de uma megaprodução em 3D anglo-americana, do produtor islandês Baltasar Kormákur, que deixa os espectadores em suspense, pregados às cadeiras do cinema, durante as suas duas horas de duração, mesmo já conhecendo o desfecho trágico da história. A NOS Lusomundo Audiovisuais promoveu o visionamento do filme, antes da sua estreia, com os alpinistas portugueses Ângelo Felgueiras e João Garcia. Também coloquei os óculos 3D e, no final, conversei com o único alpinista português, até hoje, a subir ao Evereste sem recurso a oxigénio.
O filme relata a história de uma expedição que correu mal. Acha que vai afastar ou aproximar mais as pessoas do alpinismo?
Acho que, boa ou má, é sempre publicidade. Os acidentes que têm acontecido no Evereste, todas as notícias negativas, acabam por ser positivas, porque vai haver cada vez mais gente a interessar-se pela temática e a querer subir ao Evereste. Lamento é que, na maioria das vezes, essa vontade de escalar a montanha seja pelas más razões.
Como assim?
Só para conquistar o troféu. Eles não se superam a eles próprios. Hoje em dia quase parece que as pessoas vão de fim de semana só para terem tema de selfies para o seu Facebook, já não fazem as coisas por prazer, a necessidade de "show off" parece estar a sobrepor-se à vontade de viver, isto é tão irónico. Por acaso soube que o ano passado abri uma via nova nos Himalaias, de grande dificuldade?
Não.
Pois. Não saiu em lado nenhum. Só quando tinha de mostrar serviço ao patrocinador é que fazia publicidade disso. Partilhei com uma dúzia de amigos e família e, de resto, não dou cavaco a ninguém. É aquilo que digo aos miúdos quando vou às escolas e eles perguntam se escalo montanhas para aparecer na TV. Parece uma pergunta tola, mas não é. Eu explico-lhes este negócio: eu gosto de escalar montanhas, mas não tenho dinheiro. Estes senhores das empresas têm dinheiro e querem a marca deles na televisão. Então pudemo-nos juntar. É um negócio.
O que sentiu a ver o filme?
O filme tem imagens fantásticas do Nepal, aquela viagem do helicóptero que aparece no filme não aconteceu na realidade. Eles foram a pé para o campo base. A não ser que tivessem feito a adaptação aos 5000 metros noutra montanha qualquer, não podiam fazer aquilo. Qualquer alpinista ou trekker tem de subir a pé para dar tempo ao organismo para se adaptar. Gostei muito das imagens do filme, o efeito 3D dá uma panorâmica até mais bonita do que "in loco". Reconheço muitos sítios, inclusive xerpas. Aquele velhote que, no filme, pede as licenças de escalada, aquela não é a função dele, mas é uma figura carismática do vale do Khumbu. Conheço aquela personagem há 20 e tal anos, das 18 vezes que passei por ali. Somando todo o tempo, já passei mais de três anos da minha vida no Nepal. Este filme acaba por trazer-me muita saudade, os nepaleses são um povo fantástico, ensinaram-me que é na simplicidade que encontramos o caminho mais próximo para a felicidade. Essa é a razão de estarmos na Terra e não o sermos mais ricos, velozes ou termos uma casa maior do que a dos outros.
O sentimento maior ao ver o filme foi saudade?
Não. Foi sentir orgulho no meu trabalho. Com um bocadinho de sorte, as pessoas vão compreender aquilo que fiz e orgulharem-se de existir um português que figura numa lista de apenas 15 pessoas que lá subiram sem o recurso a oxigénio. Existe uma certa banalização do Evereste, em que qualquer um com oxigénio vai lá acima. E, para mim, a questão do oxigénio é fundamental.
Está bem feito o filme tecnicamente?
Surpreendeu-me muito pela positiva também por isso. Vê-se que foi feita uma assessoria técnica muito competente. Está tudo muito próximo da realidade.
Insisto: o filme pode não ter um efeito muito positivo. Não receia que as pessoas pensem que os alpinistas são malucos?
Mas é isso o verdadeiro desporto aventura: tem algum risco de vida e muita incerteza. Às vezes o aventureiro safa-se por um fio e emerge uma pessoa melhor. Noutro desporto qualquer, por exemplo no triatlo, que já pratiquei, sabes que se desistires vem uma ambulância buscar-te. Ali não! Se paras morres. E mesmo com guias e xerpas, estás sempre entregue a ti próprio. De qualquer forma, hoje as previsões meteorológicas, por exemplo, são muito mais fiáveis do que em 1996 ou até 1999, quando eu subi e tive o acidente.
Reviveu o seu acidente ao ver o filme?
A minha experiência foi tão simples. Eu e o Pascal [ndr: colega belga de João Garcia que morreu nesta expedição] estávamos entregues um ao outro, não tem comparação com a história do filme, que foi uma grande barafunda. Depois de termos chegado lá acima, separámo-nos e o tipo não descia. Eu não queria descer sem ele. O vento levantou-se, passei a noite à espera do Pascal fora da tenda. Contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que sobreviveram acima dos 8500 metros uma noite fora de uma tenda. Foi uma estupidez completa. Com a hipoxia [diminuição do oxigénio no sangue], não se tem o mesmo discernimento mental, pensa-se mais com o coração. No dia seguinte percebi que se não descesse estava lixado. Nunca mais o vi. Era um sonho que perseguíamos. Foi um acidente fruto de vários erros, é o potenciar de uma série de pequenos erros. De forma isolada, podem ser facilmente perdoados, mas todos juntos tornam-se explosivos. O Evereste é a pior expedição da minha vida. As coisas correram mal, o objetivo é darmos o nosso melhor e regressar bem.
Existe competitividade entre as várias agências que organizam expedições e pressão para levarem pessoas lá acima, como se vê no filme?
Sem dúvida que foi também um dos ingredientes da tragédia. Acho que já não acontece tanto, foram expedições mal geridas como esta que vieram ajudar os atuais gestores a cederem cada vez menos à pressão do sucesso "versus" continuidade futura.
Como lidou com o espelho nos primeiros tempos após o acidente?
Foi uma recuperação lenta e dolorosa. Ao princípio doíam-me as extremidades dos dedos, fiz terapia de areia, depois gravilha, terra, andei a lavar pratos com água quente e a picar os dedos nos garfos. Agora tenho uma visão diferente das coisas, mas na altura achava que tinha sido injustiçado pelos média. Sempre que fizera as coisas bem feitas, ninguém quis saber. No ano em que me desgracei, fizeram de mim abertura de telejornal e capa de revista. Até a Judite de Sousa foi para Saragoça, onde estive internado. Recebi do Estado uma medalha de mérito desportivo. Costumo dizer isso aos miúdos das escolas: fiquei conhecido pelas piores razões. Na altura isso era perverso para mim, errado, não era pedagógico. Era como se os alunos precisassem de ter más notas para deixarem de ser ignorados pelos pais. Foi assim que o país me tratou durante vários anos. Fechei-me, não quis dar entrevistas. Às vezes ouvia os miúdos a dizerem alto: "olha o gajo tem um nariz que parece um elefante". Voltar à montanha depois do acidente era inevitável, era aí que encontrava tranquilidade. E as pessoas com que lá me cruzava não faziam julgamentos, como as outras que perguntavam se valeu a pena pagar este preço. Eu digo sempre que foi um acidente, como pode acontecer na estrada a quem vai de férias. Fiz merda, assumo, quero é não voltar a repetir a mesma porcaria.
AS PERGUNTAS SEM FILTRO
João Garcia tem ido muito, nos últimos anos, falar a escolas. O que é que os miúdos querem saber? "Eles fazem perguntas sem filtro, tipo como faço cocó na montanha, o que como, coisas que os graúdos têm vergonha de perguntar. Os preconceitos são coisas de adultos, não de malta nova", afirma João Garcia, que acaba por dar aulas de anatomia, fisiologia de altitude, geografia ou física, mascaradas de alpinismo. "Uma vez perguntaram-se se o alpinista ganha ao mês. Os colegas riram-se, mas eu disse que a pergunta era muito boa e expliquei que sou empresário e divido o dinheiro que recebo pelos meses do ano, já depois de retiradas as despesas."
SAIBA QUE
Quando João Garcia tem de colocar a sua profissão ao preencher algum documento, coloca autor de livros, professor ou palestrante. Na verdade, depende da finalidade do documento. "Também posso colocar guia de média montanha, alpinista, desportista", afirma. "Não cheguei a fazer outra coisa, fui cinco anos militar, aprendi disciplina, e depois fiz contrato no Exército. Quando terminei o contrato, não renovei, estava sedento de liberdade", acrescentou. Atualmente, o antigo triatleta vive de quatro ou cinco viagens que faz por ano como guia de média montanha, dos royalties dos três livros que tem publicados, das palestras que dá a empresas e de fins de semana de alpinismo com clientes privados. Continua a escalar montanhas, mas aposta agora nas subidas tecnicamente mais difíceis e não tanto na altitude.
14
A 17 de abril de 2010 João Garcia tornou-se o 10.º alpinista no mundo a conseguir a proeza de escalar todas as 14 montanhas do mundo com mais de 8000 metros de altitude sem o auxílio de oxigénio artificial. O seu projeto "À Conquista dos Picos do Mundo", patrocinado pelo Millennium BCP desde 2006, terminou 17 anos depois do seu início, em 1993. "Cheguei a dar cerca de 4 a 6 milhões de euros por semestre ao patrocinador, portanto um excelente negócio para eles", comenta. O Monte Evereste, a mais alta das 14 montanhas, com 8848 metros, foi a terceira a ser feita por João Garcia, em 1999, quando ficou sem parte do nariz e dedos das mãos devido a queimaduras. A primeira foi a Cho Oyu (8201m), e a última a Annapurna (8091m), ambas nos Himalaias.
(Entrevista publicada na revista J de 20 de setembro de 2015)