Já foi convidado, por diversas vezes, para contar a sua história em público, mas diz que fica envergonhado. Obrigado a abandonar o futebol há quase três anos por problemas cardíacos, Fábio Faria sente que a vida lhe deu uma segunda oportunidade. Criou, com a namorada, uma marca de roupa, a D"Ja Vu, com lojas online e em várias cidades do país e Luxemburgo.
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Foi no showroom que tem perto do estádio do Rio Ave, em Vila do Conde, que Fábio Faria, atualmente com 25 anos, falou sobre a sua nova vida de estudante, designer e empresário no mundo da moda, onde tem como sócia a namorada Carla Balhinha. Levou muito tempo a aceitar a realidade, foi imensamente doloroso. "Porquê eu?" Era a única pergunta que fazia quando os médicos o proibiram de continuar a ser futebolista. Podia morrer a qualquer momento como aconteceu com Fehér. Com o passar do tempo, o ex-central do Benfica - emprestado ao Rio Ave quando lhe foi diagnosticada a doença - arrumou a cabeça e descobriu não só um grande amor como também um novo talento. E nem precisa de correr campo fora ou sequer de usar os pés...
Mudou muito a sua vida desde que deixou de jogar futebol?
Completamente. Tinha a vida típica de um jogador de futebol. Agora, levanto-me de manhã cedo para ir para as aulas. Passo a manhã na faculdade. E durante a tarde, vou visitar fábricas e lojas por causa da marca de roupa que criei com a minha namorada.
Vamos por partes. Está a estudar o quê?
Estou no segundo ano do curso de Gestão do Desporto do Instituto Universitário da Maia (ISMAI). Candidatei-me às vagas para maiores de 23 anos e recebi um cheque-formação do projeto Solidariedade do Sindicato de Jogadores. Devo muito ao sindicato e ao seu presidente Joaquim Evangelista. Estou a ter uma segunda oportunidade e estou muito contente com a minha nova vida.
Como foi voltar a estudar?
No início, estava em negação e senti muitas dificuldades, até porque só tinha o 10º ano de escolaridade. Imaginem o que é chegar ali e confrontar-me com uma turma de 60 alunos, em que o professor não está a dar explicações individuais e tenho de dominar disciplinas como contabilidade e cálculo financeiro. Sempre detestei a escola. Mas aos poucos fui pedindo ajuda aos colegas e estou a conseguir. Já me sinto integrado e até estou a gostar muito. Agora, entendo que estudar disciplinas como marketing, publicidade ou psicologia é importante e útil para a minha vida. Muitas vezes não tenho vontade de estudar, mas tem de ser!
Por que se decidiu por Gestão do Desporto?
No início, queria entrar para Educação Física, mas como não podia ter aulas práticas e gostava de ficar ligado ao futebol, a gestão foi uma alternativa. O presidente do Benfica disse que eu teria sempre a porta aberta no clube e espero que, no Benfica, no Rio Ave ou noutro clube, possa um dia vir a ser útil de alguma forma.
Ainda continua a receber do Benfica?
Sim. O meu contrato termina em junho deste ano e, até agora, o Benfica não me tem deixado faltar nada. Todos os meses, no dia 10, lá tenho o meu salário certinho na conta. Luís Filipe Vieira ajudou-me muito a pôr as ideias no lugar. Entretanto, criei uma marca de roupa com a minha namorada e as coisas estão a correr muito bem.
Como se chama a marca e como surgiu a ideia?
Antes de conhecer a Carla, eu já tinha o sonho de abrir uma loja de roupa ou de ter uma marca própria. Sempre gostei de ter ideias sobre roupa. Quando jogava, costumava cortar as mangas das t-shirts e inventar um pouco nessa área. Entretanto, como ela é designer industrial, começou a desenhar as minhas ideias. Vimos que podíamos formar uma boa equipa. Na altura em que estávamos no processo criativo, a escolher os tecidos, as cores e os modelos, tivemos ambos a sensação de já ter feito aquilo antes e daí surgiu o nome D"Ja Vu. Há noites em que nem consigo dormir, a imaginar novos desenhos para a roupa, especialmente novos modelos de calças. Até brinco com a Carla que me enganei na carreira, devia ter ido para estilista [risos]. Eu não sei desenhar muito bem, mas consigo transmitir-lhe o que quero.
E como fizeram para que as roupas começassem a ser fabricadas?
Andámos de porta em porta. As fábricas não queriam aceitar, tinham medo que não pagássemos. E, além disso, a maioria produz grandes quantidades e nós queríamos, de início, poucas unidades
Ter sido jogador de futebol não ajudou a abrir portas?
Nunca disse que tinha sido jogador, não quis! Mas conseguimos e, só para terem uma ideia, já temos oito modelos de calças diferentes. E dos 60 pares que colocámos à venda no Natal, vendemos tudo numa semana. Nunca pensámos ter tanto sucesso em tão pouco tempo
Lembra-se quem lhe comprou a primeira peça de roupa? a primeira peça de roupa?
Foi o Javi García, quando ele estava no Manchester City. As calças que ele comprou custam 110 euros, mas fizemos-lhe um bom desconto porque ele ajudou-nos a fazer publicidade. Tem sido um grande amigo. Outros jogadores do Benfica e de outros clubes têm comprado a minha roupa, que é um estilo "Urban", muito casual. Ainda no Natal, o Candeias veio da Alemanha e fez compras comigo.
Já não sente tristeza por não poder jogar mais futebol?
Quando começa a época desportiva, sinto aquelas saudades. Ou quando estou com amigos do futebol, e me falam sobre a vida deles e os clubes onde jogam. Fico um ou dois dias triste, mas depois passa. Agora, até sou eu que sou conselheiro dos miúdos mais novos que estão a iniciar carreira. Às vezes ficam chateados porque o treinador não os põe a jogar e eu ajudo-os a ver o outro lado e motivo-os a trabalhar, pois têm muita sorte em poderem jogar.
Não sentiu a necessidade de se afastar das pessoas do futebol por lhe trazerem más recordações?
Nada disso. Pelo contrário, os colegas ajudaram-me muito. Quando o Nuno Espírito Santo estava no Rio Ave, foi espetacular: convidava-me para estar no balneário com eles, para os jantares de grupo, íamos todos para a palhaçada.
Qual a sua situação clínica atual?
Há um ano que não tenho problemas. Tenho de tomar um comprimido todos os dias. Às vezes esqueço-me, mas a minha namorada anda sempre atrás de mim. Ela nunca se esquece e até me telefona quando estou na faculdade só para perguntar se o tomei.
Isso é que é uma namorada...
[risos] Foi uma das coisas boas que me aconteceram. Conheci a Carla uns meses depois dos meus problemas de coração terem sido detetados. Foi o Nuno Coelho, o jogador que também passou pelo Benfica, que me a apresentou. É mais velha do que eu e ajudou-me a enfrentar o problema. Nunca pensei deixar de jogar aos 22 anos. Na altura, tive de procurar a ajuda de um psicólogo, não conseguia desabafar com a família e não conseguia perceber por que é que isto tinha de acontecer a mim. Porquê eu? Só passados seis meses é que comecei a mentalizar-me. Agora, apesar de existir uma probabilidade de ter morte súbita, já não penso muito no assunto.
Pode fazer algum tipo de exercício físico?
Sim. Estou inscrito num ginásio, faço bicicleta, alguns pesos, ainda que leves, para manter a forma. E ao domingo costumo ir jogar à bola com amigos, sou guarda-redes [risos]. Corro um bocadinho também. Ainda tenho um pouco de receio e não posso facilitar.
Ganhou muito peso ao deixar de jogar?
Agora, só tenho cinco quilinhos a mais. Ainda se nota nas minhas bochechas. Tenho facilidade em engordar. No Benfica as multas eram altas, tinha de ter muito cuidado pois andava sempre no limite de peso. Como a Carla não come carnes vermelhas e faz uma alimentação saudável, também me ajuda.
SAIBA QUE
Fábio Faria já tem as suas roupas D"Ja Vu distribuídas em lojas de Guimarães, Braga, Espinho, Felgueiras, Lisboa e Luxemburgo. O ex-jogador e a namorada vendem muito através das redes sociais (Facebook e Instagram) e acabaram de lançar o seu novo site. No ano que passou, tiveram uma coleção feminina e outra masculina, ainda que, segundo Fábio Faria, o grande sucesso da marca têm sido as calças para homem, as mesmas que o deixam tantas noites sem dormir...
300
Quando Fábio Faria foi levado para o hospital a 4 de fevereiro de 2012, durante um Rio Ave-Moreirense, estava longe de imaginar que tinha problemas de coração. Chegou ao hospital inconsciente e só no dia seguinte se apercebeu da gravidade da situação. "O médico disse-me que tinha muita sorte em estar vivo. Fiz exames e mais exames, fui operado três vezes e descobriram que o meu caso era raro, pois tenho vários focos de arritmias e não conseguem prever de onde podem vir", explica o ex-jogador cujo coração, em momentos de crise, chegou a 300 batimentos por minutos. Só para se ter uma ideia, o ritmo cardíaco normal de um adulto varia entre os 60 a 100 batimentos por minuto. E para um atleta bem treinado, um ritmo cardíaco normal pode ser perto de 40 batimentos por minuto.
COMO OS INGLESES?
NÃO OBRIGADO!
"Há tempos ouvi, num documentário na televisão, que 90% dos futebolistas em Inglaterra ficam na miséria depois de terminarem as suas carreiras. Como é que isto ainda é possível?", questiona Fábio Faria. Para o ex-jogador, a mentalidade dos desportistas tem vindo a mudar e hoje em dia já existem muitos a estudarem na universidade para garantirem o seu futuro. "O Carlos Resende, que foi um grande andebolista, é meu professor. E o líder da claque do FC Porto está também no ISMAI a tirar um mestrado em gestão do desporto. Há muitos futebolistas também a estudarem lá. O Caetano, do Gil Vicente, é um deles, por exemplo." O curso de Gestão do Desporto escolhido pelo atleta foi frequentado também pelos árbitros Paulo Costa e Jorge Sousa, bem como os ex-desportistas Miguel Maia, do voleibol, e Vítor Baía, entre outros.
(entrevista publicada na revista J de