PAASE DE LETRA -O Conselho de Arbitragem veio admitir o erro (...) Há uma questão jurídica muito relevante, a de como enquadrar o erro do VAR.
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No livro "Alice no Outro Lado do Espelho", Lewis Carrol, o seu autor, apresenta-nos uma personagem bem perturbadora: Humpty Dumpty. Humpty Dumpty é uma espécie de homem-ovo, um "sempre-em-pé" falante e capaz de estabelecer os mais estranhos diálogos, sempre com o objetivo de vencer as discussões.
"Quando eu uso uma palavra, - refere Humpty Dumpty - ela significa o que eu quiser que ela signifique... Nem mais nem menos / A questão é - diz Alice - se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes / A questão é - afirma Humpty Dumpty - quem será o mestre... E eis tudo."
Poucos saberão que esta personagem está entre as mais importantes de sempre da história da literatura, pois antecipou, de forma profética, várias correntes de pensamento, com filósofos como Russel, Wittgenstein, Quine ou Kripke. O que decorre dos diálogos de Alice com o ovo falante é, afinal, a verdade da linguagem: ao colocar-se como senhor das palavras, o mestre do sentido, a personagem transforma-se no dono do mundo. Quem lê os diálogos percebe que Humpty Dumpty descobriu uma fonte quase inesgotável de poder ao manipular a linguagem sem outra intenção além de vencer a discussão e impor seu ponto de vista.
Vem isto a propósito do golo anulado pelo VAR a Ricardo Horta no jogo contra o Moreirense. O VAR, tecnologia destinada a preservar a verdade desportiva, também erra, sabemo-lo agora. Todos intuíamos isso, mas a diferença é que, agora, foi o próprio Conselho de Arbitragem que veio admitir o erro, um erro de calibragem da própria tecnologia. Só que o VAR é uma espécie de Humtpy Dumpty do futebol, é a "personagem" que, por recurso à tecnologia, atribui o valor de verdade às jogadas mais polémicas. Ninguém pode discutir o sentido que o VAR atribui à jogada, pois é o VAR a fonte de verdade na análise dos lances. Mas, afinal, o VAR também dá "falsos positivos", como é o caso daquele fora de jogo de Ricardo Horta, que "toda a gente via a olho nu" que estava em jogo por mais de um metro. Este tipo de "fora de jogo assintomático" já ocorreu antes em jogos do Braga (aquele golo validado ao Belenenses no Jamor ainda hoje custa muito a "engolir"). Mas depois lá vinham umas linhas coloridas pintadas nos nossos televisores a referir diferenças milimétricas entre posições dos jogadores e nós teríamos que deixar de confiar nos nossos olhos.
A tecnologia, afinal , é capaz de detetar os erros dos nossos sentidos ( o VAR é o Deus cartesiano, único garante de que os nossos sentidos não nos enganam). Por isso, com esta admissão de um erro crasso, sabemos que o VAR erra e, afinal, não é garante de nenhuma verdade desportiva. Erro esse que introduz uma questão jurídica muito relevante, sobre a qual escreverei proximamente, que é a de saber como enquadrar o erro do VAR (de calibragem) na tradicional dicotomia entre erro de facto e erro de direito. Aprendemos com Humpty Dumpty que o verdadeiro poder está na manipulação da linguagem. A questão, no VAR, é: "Quem será o mestre? E eis tudo..."