PLANETA DO FUTEBOL - A visão e análise de Luís Freitas Lobo.
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1 - Há jogos que se ganham só quando uma equipa se assusta e acorda de um sono profundo de quase 85 minutos.
Mais uma vez, o tempo da Girafa, num jogo em que dos três corredores, o Sporting, sem flancos, só tinha o central para ganhar
Sucedeu com a reaparição do tempo da Girafa já nos descontos, ou seja, em tradução leonina, a subida às alturas, para cabecear, de Coates. Um golo saído já de um jogo de cinco minutos, aqueles em que o Sporting jogou numa velocidade e ritmo como não fizera até então (até ao susto do empate).
Não sei como Rúben Amorim preparou este jogo, mas a forma como a equipa entrou nele e o tentou gerir foi quase querer ganhá-lo de olhos fechados, tal forma como parecia basear a sua estratégia em, após marcar, não deixar acontecer nada. O Santa Clara, uma equipa de organização serena com linhas juntas num bloco subido, não caiu nisso e refez as suas ideias.
Será possível olhar para a conquista do título como uma contagem decrescente de jogos? Para este Sporting, os nove pontos de vantagem no primeiro lugar (com 13 jogos para disputar) essa tentação pode, jogo a jogo, adquirir diferentes formas. Neste, a entrada sonolenta mostrou uma equipa com, talvez, excessiva paz interior.
Quando, nesse ritmo-sonâmbulo, Tabata fez um passe (um toque subtil olhando para um lado e metendo a bola para outro) de morte, o resto (o remate) já teve assinatura reconhecida: Pote Gonçalves. Todos os espaços parecem vazios antes dele entrar neles.
O lado direito do onze leonino sentiu-se estranho
2 - O lado direito do onze leonino sentiu-se estranho. A ausência de Porro muda muito a forma da equipa atacar nesse flanco. Amorim pegou no bom jogo de Matheus Nunes na direita no Dragão e imaginou prolongar essa dinâmica agora como lateral. O jogo era, porém, diferente. Pedia mais saída e menos temporização. A falta de entrosamento com Tabata travou ainda mais a largura do jogo leonino por esse corredor. Ficando a esquerda entregue às subidas do lateral Nuno Mendes, era um onze quase sem flancos a atacar nos últimos 30 metros.
3 - Sem flancos, os princípios de jogo da equipa estavam todos concentrados no centro: a coluna vertebral com o equilíbrio nº 6 de Palhinha, a saída nº 8 de João Mário e a definição do nº 10 de ultimo terço de Pedro Gonçalves. Era um risco. Dos três corredores para chegar à baliza adversária, este Sporting com adaptações só usava verdadeiramente um: o central. Não é habitual.
Por isso, mais estranho se tornou quando o jogo caía mais num sono profundo. Amorim decidiu tirar a referência nº 9 (saiu Tiago Tomás) e passou a jogar sem avançado-centro. Jovane entrou para o tal jogo de cinco minutos depois da equipa quase se derrotar a si própria. Salvou-se, mais uma vez, no tempo e no gesto da "girafa". Coates, subindo muito acima do treinador.
Talento a sobreviver
Critica-se muito o nível do futebol do nosso campeonato, as muitas faltas e o muito tempo com o jogo parado. Mas, tendo em conta tantos defeitos, a minha pergunta, muitas vezes, é de onde saem, nesse contexto, tantos talentos?
Se tomamos como certeza as equipas terem os chamados operários, jogadores honestos e táticos, ficam a pertencer à casta do fantástico as aparições como a de Abel Ruiz, de suplente cinzento de Paulinho a um nº 9 explosivo, imparável a correr num latifúndio de relva. Ou como a cada jogo desfrutamos de Luther Singh, craque aparentemente tímido que se expressa com rasgos e remates no Paços? Quero acreditar que eles surgem quando o ar se torna mais respirável. Carvalhal e Pepa podem falar disso.
O talento surge quando o ar se torna mais respirável
Tenho a certeza que muitos ainda continuam a gostar de futebol por, de repente, verem partidas com jogadores desta espécie. Se não fosse por eles, iríamos sempre ver só o que esperamos. O Braga e o Paços, cada qual na sua proporção (e pontuação na classificação), têm dado os melhores deste campeonato dos talentos improváveis, como se competisse (saudavelmente) contra si próprio.