Transmissão de jogos pela BTV é filha da convicção de que o Benfica paira acima dos outros
VISTO DO SOFÁ - Opinião de Álvaro Magalhães
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Talvez valha a pena aproveitar este tempo sem bola para lançar um olhar à mais persistente anomalia do nosso futebol: a transmissão dos jogos do Benfica pelo canal oficial do clube.
A transmissão de jogos oficiais pela BTV é filha dessa mania da grandeza, dessa convicção de que o clube paira acima dos outros clubes e da própria lei
Há a consciência geral de que estamos perante uma aberração, mas essa consciência convive com uma estranha conformação, que se assemelha a uma rendição.
Na verdade, essas transmissões prestam-se ao exercício da parcialidade e são um espinho cravado nos princípios da isenção e da neutralidade. O futebol, ainda mais com a chegada do videoárbitro, passou a ser um fenómeno completamente televisivo. Mesmo os que estão no estádio são, hoje, espectadores televisivos: nas bancadas, procura-se a repetição do lance no telemóvel, no banco há um monitor à frente dos olhos dos treinadores, que até estão quase em cima do relvado. Todos à espera que o realizador lhes mostre o rosto exacto da verdade.
O que não pode acontecer se a transmissão for da BTV, um canal que tem uma natureza doutrinária e confessional, o que o incapacita para a imparcialidade. Se os seus funcionários seguirem o código de conduta do canal, estão obrigados a pôr a verdade em segundo plano, pois a prioridade é a defesa do clube-patrão.
Toda a gente sabe que há modos de manipular ou esconder imagens, induzindo percepções erradas da realidade. Confiram comigo alguns desses exemplos, todos do mesmo jogo, o último Benfica-Braga. Falou-se muito de um penálti sobre Ricardo Horta, mas não houve uma única imagem esclarecedora desse lance. Também ninguém viu uma repetição que fosse do lance em que João Neves - dizem - teria de ver um segundo amarelo. Perto do final, houve uma confusão provocada por um adjunto de Schmidt, que atrasou o jogo, mas o que vimos foi apenas Bruma a pontapear a bola contra o banco dos suplentes do Benfica. Por outro lado, cansámo-nos de ver o gesto furtivo de António Salvador, na bancada, depois do tal penálti não marcado, sugerindo roubo.
Esta excentricidade é filha do sentimento de grandeza, que é próprio do clube; o que custa a entender, se relacionarmos grandeza com feitos desportivos, não com número de sócios. Rui Costa, que interpreta e dá ênfase a essa mania na perfeição, está sempre a pedir respeito pela grandeza do Benfica. E não é preciso muito, basta um penálti por marcar e lá vem a grandeza do clube. Disse ele, recentemente, referindo-se à centralização dos direitos televisivos: "O presidente da Liga sabe que, apesar de a lei ser governamental, o Benfica não irá cumprir lei nenhuma se se sentir prejudicado." Quando a lei não coincide com os interesses do clube, que se lixe a lei, aplica-se a exclusiva lei da outra nação que é o clube, esse estado soberano.
A transmissão de jogos oficiais pela BTV é filha dessa mania da grandeza, dessa convicção de que o clube paira acima dos outros clubes e da própria lei. E, à falta de melhor explicação, dir-se-ia que é também essa grandeza que ofusca e paralisa os responsáveis que têm de zelar pela imparcialidade das competições e continuam a fazer de conta que não vêem este elefante estacionado no centro da sala.