Uma opinião de Ricardo Nascimento
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No futebol moderno, as transferências já não são o que eram. Em tempos, bastava um telefonema entre presidentes, um aperto de mão, um Porsche amarelo e talvez a mala de dinheiro (alegadamente, claro). Hoje, temos cláusulas de recompra, percentagens de futuras vendas, comissões de empresário e… bridge transfers. Um conceito com nome de obra pública e cheiro a engenharia - mas não é civil, é financeira.
E para que serve esta manobra? Ora, como qualquer ponte que se preze, serve para atravessar obstáculos
O que é uma bridge transfer, perguntam vocês? Imaginem isto: o jogador está no Clube A, mas o destino final é o Clube C. Só que, pelo meio, aparece um misterioso Clube B. E esse Clube B, que muitas vezes tem mais jogadores inscritos do que adeptos nas bancadas, compra o jogador ao A e, pouco tempo depois - minutos, horas, um dia, vá - vende-o ao C. Et voilà. A ponte está construída.
À superfície, tudo parece legítimo. Afinal, transferências entre clubes são livres, e se o jogador passou por B, passou por B. Mas é aqui que a coisa se complica: o Clube B, na verdade, nunca quis o jogador. Nunca o apresentou, nunca lhe deu número na camisola, nunca lhe viu os treinos. Serviu apenas de escala. Um layover técnico, como em voos baratos para países exóticos.
E para que serve esta manobra? Ora, como qualquer ponte que se preze, serve para atravessar obstáculos. Neste caso, obstáculos como as regras do fair-play financeiro, os mecanismos de solidariedade da FIFA, e - o mais picante - a proibição da detenção de direitos económicos por terceiros. Porque se o jogador passou por um clube-ponte antes de chegar ao destino, os verdadeiros donos da operação podem esconder-se atrás da cortina.
Mais do que um truque de bastidores, a bridge transfer é uma lição de prestidigitação jurídica: no papel, tudo bate certo; na prática, o jogador vai de A para C com uma escala fantasma em B. E o B até pode nem ser bem um clube: pode ser uma SAD com dois funcionários e uma sede partilhada com um restaurante de kebabs.
Os benefícios? Múltiplos. O Clube C pode adiar ou redistribuir os custos da operação, mantendo as contas limpas para a UEFA. O Clube B, por sua vez, encaixa uma comissão ou disfarça a origem de fundos que chegam por vias menos santas. E os clubes de formação do jogador - esses que criaram o atleta e deviam receber a tal compensação solidária - acabam a ver a transferência em direto pela televisão… sem direito a tostão.
Legal? É muito discutível. Os tribunais já chamaram “simulação” a um empréstimo com cláusula de compra obrigatória. Não custa imaginar o que diriam de uma bridge transfer montada só para disfarçar uma venda direta. Porque uma coisa é fazer uma ponte para unir margens. Outra é usá-la para fintar a legalidade com os quatro piscas ligados.
No fim, quem perde? Talvez o futebol. Talvez a transparência. Talvez aquele clube modesto onde o jogador cresceu, que precisava dos 5% da solidariedade para pagar as bolas novas. Mas ganha o financeiro de serviço. E isso, nos dias que correm, parece ser o que mais conta.