"Ser grande significa ser posto à prova a cada instante"
FOLHA SECA - O cronista Carlos Tê escreve, em O JOGO, sobre os grandes e os pequenos: "À guisa de máxima de ano novo, fica isto: quando se sofre para vencer um pequeno, deve-se-lhe ficar grato. Não é uma afronta, é o tributo rosnado à nossa grandeza, a diferença entre vassalagem e acatamento da superioridade em campo."
Corpo do artigo
Uma discussão recorrente entre os eternos litigantes da bola consiste em acusar pequenos e médios clubes de fazerem tudo para ganhar a certos grandes e abrirem as pernas a outros. O argumento, tão antigo como o próprio futebol, sugere simpatias, fretes, malas e, se faz parte do ardente cardápio das polémicas de café, ao ser transferido para os protagonistas requer um minuto de reflexão. Por um lado, até se compreende que muitos profissionais, quando são eliminados duma Taça ou perdem um jogo que compromete uma ida à Liga dos Campeões, acumulem a azia do ofício com a do adepto.
O que se espera dum opositor, pequeno que seja, é o descaramento de nos querer ganhar, mesmo a feijões
Por outro lado, é um contrassenso. O que se espera dum opositor, pequeno que seja, é o descaramento de nos querer ganhar, mesmo a feijões. Se eu fosse treinador dum clube grande, não teria consideração por quem não se ferrasse todo para me ganhar, embora desse jeito trabalhar menos. Ganhar é a essência de qualquer jogo, seja nas corridas de sacos, na malha, no dominó. Quem joga para agradar aos amigos, devia dedicar-se a fazer colecção de carteiras de fósforos, ao menos aí não há suspeitas nem ressentimentos, só há troca de cromos.
A verdade é que há treinadores e dirigentes que, perante obstáculos imprevistos, entram em insinuações, lamentam-se do autocarro, da garra excessiva, do antijogo, da inspiração que não apareceu contra outros. Vejamos a coisa por outro ponto de vista: alguém que se esgadanha para nos vencer, com mais ou menos retranca, é alguém que, acima de tudo, nos respeita. Somos tão temidos e respeitados que, para esse alguém, vencer-nos é um manifesto de afirmação.
Derrotar um rival poderoso configura um acto de antropofagia desportiva, é degluti-lo e nutrir-se dos despojos para ficar mais forte e aspirar a uma grandeza aproximada. Para não falar do ensejo de dar nas vistas. Lembro-me do cabo-verdiano Óscar, no fim da década de 70, que acabou contratado ao Estoril por ter sido carrasco do Porto algumas vezes, mas depois não pegou de estaca. Sem esquecer os que se esfalfam ainda mais nesses jogos por serem adeptos do clube que defrontam. É o seu modo de dizer que querem muito estar do outro lado, e só é por não estarem, ou por terem sido rejeitados (Tozé, no Estoril), que sacam das entranhas uma fogosidade extra.
E há o contrário complacente, que é ir a jogo de modo relaxado. No último domingo, os vinte minutos iniciais para a Taça da Liga mostraram um Porto aturdido por um Belenenses com oito suplentes e já sem objectivos. Para os de Belém, contudo, havia um objectivo: jogar e dar nas vistas a um possível olheiro na bancada, ou a alguém no outro banco, como sucedeu com Fernando no Santa Clara. À guisa de máxima de ano novo, fica isto: quando se sofre para vencer um pequeno, deve-se-lhe ficar grato. Não é uma afronta, é o tributo rosnado à nossa grandeza, a diferença entre vassalagem e acatamento da superioridade em campo. Ser grande significa ser posto à prova a cada instante. E quanto maior se é, maior o desejo de vitória sobre nós. E não pode ser doutra maneira.